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Por Elisabeth Roudinesco1
Gostaria inicialmente de
agradecer a Lucia Valladares que me honrou me convidando para
pronunciar a Conferência inaugural deste Colóquio. Ela foi minha aluna,
do qual me orgulho, e soube trabalhar muito bem nos arquivos para
redigir sua tese sobre a História da psicanálise em São Paulo.
Antes
de situar a questão dos arquivos na sua relação com a metodologia
historiográfica, gostaria de fazer um desvio pela autobiografia. Isto
porque, como sabemos muito bem, toda pesquisa histórica, toda abordagem
arquivistica supõe a autobiografia. Porque ao contar a história dos
outros, ou mesmo a história extraída desse grande Outro que é o arquivo
em estado bruto, o historiador se diz através do outro, através daquilo
que conta dos outros, através da maneira pela qual interpreta o arquivo,
pela qual o imagina e o reconstrói. Há sempre na pesquisa histórica,
não um simples método, mas uma “ego-história”, uma Selbstdarstellung como dizia Freud.
Há
portanto uma ligação muito forte entre o ato de fazer a história – eu
ia dizer o ato de amor ou ato sexual – e a clínica da psicanálise.
Normalmente, a história se escreve quando a teoria está em crise, quando
os mestres desaparecem para deixar lugar à herança institucional.
Igualmente há nesse ato de fazer a história uma maneira de relançar as
questões teóricas. A remeração do passado é como uma travessia do
inferno. O historiador passa pela morte e regressa dos mortos, tal como
Ulisses, tal como um personagem trágico.
Fundamentalmente,
poderia se dizer, ele só trabalha sobre a morte, mesmo quando escreve a
história dos vivos, porque ele inscreve o presente e o vivo em uma
eternidade que se assemelha ao silêncio da tumbas. O crontrário da
sociedade do espetáculo, o contrário dessa economia de mercado –
verdadeira teologia da mercadoria – que exclui o trágico e que apaga a
história para substituir-lhe a um tempo reduzido a zero, um tempo
limitado à passagem de uma imagem virtual na televisão.
O
historiador fala com os deuses, com os mitos, com a eternidade. E mesmo
quando ele recusa a hagiografia, ele fabrica deuses. Ao exumar os
mortos, ele permite aos vivos questionar os deuses e se interrogar sobre
o presente. Cada vez mais hoje em dia, os historiadores do freudismo, e
principalmente a escola americana que domina o mundo, não pertencem
mais à comunidade psicanalítica. Eles se distanciam do objeto sobre o
qual trabalham e muitas vezes seus estudos não são lidos pelos
psicanalistas que têm medo da história, da sua própria
história, onpondo, quando ela é escrita, uma resistência tão violenta
quanto aquela que o comum dos mortais impõe à psicanálise. Com essa
atitude, eles enlouquecem os historiadores tornando-os anti-freudianos,
como é o caso da escola revisionista americana.
Existe em todo
historiador, em toda pessoa apaixonada pelo arquivo uma espécie de culto
narcísico da coisa arqueológica, verdadeira captação especular da
narrativa histórica pelo arquivo, e é necessário se violentar para não
ceder a isso.
Se tudo é arquivado, se tudo é vigiado, anotado,
julgado, a história como criação não é mais possível: ela é então
substituida pelo arquivo que se torna saber absoluto, espelho de si. Mas
se nada é arquivado, se tudo é apagado ou destruído, a história tende
para o fantasma ou o delírio, para a soberania delirante do eu, ou seja
para um arquivo reinventado funcionando como um dogma.
Entre
esses dois impossíveis, que são como as duas bordas de uma mesma
interdição – interdição de saber absoluto, interdição da soberania
interpretativa do eu – , se faz necessário admitir que o arquivo –
destruído, presente, excessivo ou apagado – é uma condição da história.
Para
resumir, poderia se dizer que a obediência cega à positividade do
arquivo, ao seu poder absoluto, conduz tanto a uma impossibilidade da
história que a recusa do arquivo. De outra forma dita, o culto excessivo
do arquivo conduz a uma contabilidade (a história quantitativa)
desvestida de imaginário, e interditanto que possamos pensar a história
como uma construção capaz de suprir a ausência de traços. Quanto à
negação do arquivo, de seu peso interiorizado como memória subjetiva, ou
como herança genealógica, ela corre o risco de conduzir a um delírio
que reconstruiria o espelho do arquivo como um dogma.
Os arquivos Freud
Em
se tratando de Freud, a obra escrita estava terminada no momento de sua
morte. Em 1939, as correspondências, abundantes, ainda não estavam
reunidas mas sabia-se que não estavam de maneira alguma perdidas. Se
produziu então, no movimento psicanaítico, uma vontade forte e combinada
de escrever a história, de continar dando vida à obra de Freud de
transmití-la.
Ernest Jones foi o artesão desse empreendimento historiográfico, inicialmente porque ele redigiu a biografia do mestre,2 e
em seguida porque consolidou a posição da escola inglesa no mundo. Ele
foi seu fundador e a havia concebido como um contra-poder à poderosa
escola americana reforçada desde 1933 pela chegada dos imigrantes
europeus, vienenses principalmente. De onde um duplo movimento: os
imigrantes queriam conservar os traços de uma Europa varrida pelo
nazismo e dessa forma fazer reviver o Freud da juventude e das
lembranças vienenses deles, enquanto Jones, chefe político da
International Psychoanalytical Association (IPA), fundada em 1910,
procurava assegurar a predominância política e geográfica da
Grã-Bretanha e da escola inglesa de psicanálise face ao gigante
americano. Tornada inglesa após sua imigração em 1938, Anna Freud, se
sentia dividida entre seu amor pelos vienenses, que haviam, a maior
parte deles, adotado a cidadania americana, e sua ligação à cidade de
Londres onde ela havia sido tão bem acolhida como seu pai e toda a sua
família.
Há portanto dois grandes lugares de depósito de arquivos
e de atividades historiográficas após a 2° Guerra Mundial: Washington e
Londres. Para a tradução da obra de Freud e para o empreendimento
biográfico, Londres triumfa sobre Viena e sobretudo sobre a diaspora
vienense: Jones foi o historiador do movimento e James Strachey o
responsável pela tradução completa das obras de Freud, a famosa Standard
Edition muito mais lida hoje em dia que as Gesammelte Werke ou as
Gesammelte Schriften.3
Foi
na Library of Congress (Loc), na Biblioteca do Congresso de Washington
que foram depositados os arquivos. E foi primeiramente Siegfried
Bernfeld, imigrante vienense, que concebeu o projeto das suas Freudiana, após
ter tentado sem sucesso escrever a biografia de Freud. Em seguida coube
a Kurt Eissler realizar esse sonho, ao constituir o departamente dos
manuscritos de Freud: os Sigmund Freud Arquivos (SFA).
Entre os representantes da terceira geração mundial,4 Kurt
Eissler permanece o mais vienense dos psicanalistas americanos. Ele
possuia um maravilhoso senso de humor e se dedicou ao longo de toda a
sua vida a defender a doutrina original de Freud a ponto de adotar, por
gosto da provocação, uma atitude de franca rebelião contra todos os
avanços do pós-freudismo. Sua ortodoxia tinha assim a forma de um
conservadorismo resplandescente, uma à maneira de Lacan. Eissler
manifestou uma forte hostilidade à escola americana, que criticava por
ter abandonado a subversão freudiana e a análise profana. No entanto,
não cessou de se colocar com o avalista de uma fidelidade sem falhas aos
ideais da IPA.
Após a Segunda Guerra mundial, instalado em Nova
York, ele reuniu para o SFA numerosos documentos sobre a saga freudiana:
cartas, textos ou entrevistas com os sobreviventes que haviam
participado do movimento (Max Graf ou Wilhelm Reich, principalmente).
Com o assentimento de Anna Freud, ele adotou uma politica tão brilhante
quanto desastrosa. Preocupado em classificar e ordenar toda a memória de
um mundo absorvido e do qual conheceu apenas os últimos momentos, ele
recusou aos historiadores profissionais o acesso aos arquivos com o
objetivo de conservar intacta a imagem do mestre morto.
Eissler
tinha uma concepção “soberana” do arquivo, no sentido em que este, ainda
que depositado em um lugar laico, garantido pelo Estado, ficaria
reservado exclusivamente aos membros de uma comunidade definida e
constituída em um reino soberano: a IPA. O arquivo seria assim a
“propriedade” dos psicanalistas formados no celeiro do movimento
freudiano. Os “outros”, pertencendo a um outro campo, a uma outra nação,
a uma outra comunidade, estavam excluídos.
Dividida em “séries”
(A,B,E,F,Z), a Coleção SF – cujos direitos para publicação dependem da
Sigmund Freud Copyrigths (que representa os interesses financeiros dos
sucessores, netos e descendentes de Freud) – finalmente acabou por ser
aberta a todos os pesquisadores, ou seja esses “outros” que havia sido
excluídos.
Foram impostas restrições por vezes justificadas e
conforme as leis em vigor, mas acrescentaram também interdições
constestáveis e muitas vezes ridículas. Assim, a série Z, submetida a
uma desclassificação progressiva indo até o ano 2100, deveria conter
documentos sobre a vida privada das pessoas (pacientes, psicanalistas
etc.) mas na realidade, acaba escondendo certos textos que não têm nada
de confidencial e outros que não comportam nenhuma revelação
extraordinária, ainda que relacionados com segredos de família ou de
divã. A eles se acrescentam ainda documentos que não entendemos porque
estão lá, por exemplo os contratos de Freud com seus editores, as trocas
de correspondência com uma organização esportiva judaica, ou
informações sobre Josef Freud já conhecidas dos historiadores.
Em uma conferência datando de 1994,5 Josef
Hayim Yerushalmi mostra que a necessidade de esconder segredos de
polichinelo conduz a alimentar rumores inúteis e que a única maneira de
evitá-los seria de abrir todos os arquivos ditos “secretos” afim de
deixar livre curso a todas as pesquisas. Yerushalmi lembra a frase de
Lord Acton: “Fechar os arquivos aos historiadores corresponderia a
deixar sua história aos seus inimigos”. Et conclui: Vivemos uma época
onde a informação, em todos os campos, nos soterra sob um dilúvio, ao
qual a pesquisa sobre Freud não escapa. Esta última, tornou-se uma
industria em si-mesma. O controle da ordem estritamente bibliográfica
dos seus produtos é de agora em diante de uma certa forma impossível.
A
historiografia oficial desenvolvida por Eissler supõe não uma ausência
de arquivo mas um excesso de arquivos. Nessa perspectiva, o arquivo é
depositado como um saber absoluto que se deve censurar. O traço, quanto
mais sacralizado mais deve ser dissimulado: o excesso de arquivo caminha
junto com a censura do arquivo.
De tanto manter o princípio
soberano de uma história oficial e de recusar aos historiadores o acesso
aos arquivos, os herdeiros de Freud provocaram uma verdadeira
tempestade nos Sigmund Freud Arquivos, SFA.
Em 1980, com a
autorização de Anna Freud, Eisller decidiu confiar a publicação integral
das cartas de Freud a Fliess a um universitário americano, Jeffrey
Moussaieff Masson, devidamente formado nos quadros da IPA. Ainda que
efetuando um real trabalho de edição das cartas,6 ele
decidiu decifrá-las interpretando-as de maneira selvagem, convencido de
que elas recobriam uma verdade escondida, um segredo vergonhoso: o
segredo de uma sedução escondida. Assim, ele afirma, sem a menor prova,
que Freud teria renunciado por covardia à teoria da sedução. Não ousando
revelar ao mundo as atrociades cometidas por todos os adultos sobre todasas
crianças, Freud teria assim inventado a noção de fantasma para mascarar
a realidade traumática do abuso sexual na origem das neuroses.
O
pai fundador se tornava portanto suspeito, não somente de ser um
falsario, mas um cumplice de um crime cometido sobre o corpo das
mulheres e das crianças. Aos olhos da América puritana, Freud foi
transformado em um personagem diabólico. Soberano mentiroso, aprisionado
na tormenta de um segredo patógeno, ele se assemelhava a esse pastor
culpado do romance de Nathaniel Hawthorne, A carta escarlate (1850).
Igualmente, ele podia ser acusado de ter dissimulado propositalmente
crimes incestuosos, afim de preservar o poder patriarcal.
Em 1984? Masson publicou um livro sobre o tema, O Real escamoteado,7que
foi um dos maiores best-sellers psicanalíticos americanos da segunda
metade do século. Contra os ortodoxos da teoria do fantasma, contra
Eissler e Anna Freud, a obra vinha confortar as teses de uma
historiografia dita “revisionista” que colocava em causa a soberania de
uma história oficial.8 Mas
a revisão efetuada por Masson, longe de conduzir a uma elucidação da
verdade, ia no sentido de uma interpretação delirante do arquivo. Face
ao arquivo censurado, Masson excedia o arquivo, como se este fosse uma
espécie de real incontornável, um lugar de gozo, suscitando
significações ilimitadas, impossíveis de conter ou de simbolizar.
Após
o caso Masson, a corrente revisionista americana se desmontagem, não
somente da doutrina freudiana, mas do próprio Freud. Após ter sido
assimilado a um sábio diabólico, ele foi acusado de relações abusivas na
sua própria família. Desde 1981, Peter Swales, um autodidata, louco por
arquivos, afirmou que Freud teria tido relações sexuais com sua cunhada
Minna Bernays. Inclusive, ele teria a engravidado e depois forçado a
abortar. Preparando uma biografia de Fliess, ele pretendia encontrar nos
arquivos a prova de que este teria querido assassinar Freud.
Freud Museu
É
difícil evocar os arquivos Freud sem falar de um outro grande lugar de
depósito de traços: o Freud Museum de Londres. Habitado por Freud em
1938, depois por sua filha Anna, essa casa do 20 Maresfield Gardens no
bairro de Hampstead é uma espécie de lugar pleno que se opõe a um lugar vazio, ou seja à outra casa de Freud, situada em Viena.
Freud
um dia disse a Ernest Jones que sentia por Viena uma aversão profunda:
“No início das minhas relações com ele, escreve Jones, e antes de
conhecer sua aversão, um dia, eu lhe disse ingenuamente que do meu ponto
de vista deveria ser muito interessante viver em uma cidade tão cheia
de idéias novas. Para minha grande surpresa, ele se levantou
repentinamente e de um tom seco me disse: Faz cinquenta anos que vivo
aqui e nunca encontrei uma idéia nova!”9
Em
3 de junho de 1938, ele deixou Viena pelo Orient-Express para nunca
mais voltar. Ele levava com ele sua biblioteca, seus objetos, seus
móveis, suas cartas, seus manuscritos: os traços e lembranças de uma
vida inteira. O apartamento da Bergasse, 19 foi então inteiramente
esvaziado, e tudo daquilo que continha foi transferido para Londres na
nova casa de Hanspsteadt. Dez dias antes da partida, a pedido de August
Aichhorn, Edmund Engelmann, jovem fotógrafo vienense, fez uma série de
fotos dos lugares ainda intactos. Ele utilizou uma Rolleiflex e uma
Leica. Forçado, ele também, de deixar Viena, ele confiou os negativos a
Aichhorn que os fez chegar a Londres: “Eu voltei a Viena, escreve
Engelmann, após a partida do último locatário. Vi o quanto os lugares
haviam sido destruídos: subsistiam poucos traços da sua antiga
dignidade: as belas peças de faianças havia desaparecido tendo sido
substituídas por horrorosos aquecedores . Reunidos em um álbum,10 as
fotografia de Engelmann traziam o testemunham vivo de quarenta e sete
anos (1891-1938) de uma vida consagrada à ciência, à arte, à cultura.
Quando
o historiador Henri Ellenberger foi visitar a Bergasse, em 24 de agosto
de 1957, ele constatou que a Federação mundial da saúde mental havia
colocado uma placa em lembrança de Freud. Mas a locatária dos lugar lhe
declarou: “De fato, é aqui mas não tem nada para ver. Tudo foi mudado.
Não podemos mostrar nada. O tempo inteiro, as pessoas vêm pedir para
visitar o apartamento. É irritante. Prestei queixa diversas vezes às
autoridades pedindo que me comprem o apartamento (me dando um outro em
troca). Mas eles dizem que não têm dinheiro;”11
Somente
em 1959 foi fundada a Sigmund Freud Gesellschaft com o objetivo de
restaurar o apartamento e criar um museu. Nele só estarão as fotos e os
móveis da antiga sala de espera de Freud.
Freud havia constituido
um museu pessoal graças à sua coleção de antiguidades. Na verdade, ele
leu mais obras de arqueologia que de psicologia. Em sua coleção não
consta nenhum objeto posterior ao Renascimento. Antiguidades gregas,
latinas, chinesas, egípcias, tais são as preferências do fundador da
psicanálise que não teve nenhum interesse por nenhuma forma de arte
judaica e que durante toda a sua vida manifestou uma espécie de horror
ao vazio muito vitoriano. Em sua casa, tudo era recoberto de alguma
coisa. Os móveis, as paredes, o divã eram carregados de pesados tapetes
persas, almofadas, tinturas coloridas.
Freud misturava, sem
classificar nem ordenar, objetos de todas as origens: molde da Gradiva,
cavaleiro chinês de barro, gravura representando uma Esfinge, multiplas
figuras romanas, chinesas, gregas egípcias . Ele as colocava; umas vinte
dentre tantas, face a ele, sobre sua mesa de trabalho, com uma clara
preferência por personagens em posição de pé. Ele atribuía a cada
estatueta uma personalidade própria e as amava como membros de uma
famílila.
Viena é portanto o lugar de um museu vazio, que envia
ao lugar vazio da psicanálise nesse país, a uma psicanálise duas vezes
vencida: primeiro pela queda do Império austro-hungaro, segundo, pela
irrupção do nazismo. Após a Segunda Guerra Mundial, e apesar dos
esforços de alguns vienenses, a psicanálise não pôde se reconstruir na
Austria e Anna Freud colocou a casa da Bergasse em “quarentena”. Em
Londres, o museu pleno é uma espécie de símbolo da resistência freudiana
do continente europeu face a uma América que Freud detestava e que
acabou por devorar sua descoberta.
Em 1980, a SFA comprou o
terreno e a casa, graças aos fundos que a New-Land Foundation, fundada
por Muriel Gardiner, havia colocado à disposição de Anna. Em 1986, o
Freud Museum abriu suas portas. Acessível aos visitantes – que podem ver
o divã de Freud, sua biblioteca, suas coleções – , ele contém também
numerosos arquivos: vinte e cinco mil documentos, entre os quais as
fotografia, cartas e fotocópias de manuscritos e correspondências cujos
originais são conservados na Biblioteca do Congresso. O museu de Londres
é portanto um museu do museu Freud.
Os Arquivos Lacan
A
obra de Lacan é oral e durante vinte e seis anos, foi enunciada através
de uma palavra viva, ao longo de todo o famoso Seminário. Foi
necessário a intervenção enérgica de um grande editor, François Wahl,
para que fosse publicada a famosa quantidade de artigos de Lacan (os Escritos), que alias eram muitas vezes conferências transcritas e depois corrigidas.12 Já
os outros trabalhos foram confiados à família herdeira – principalmente
o genro de Lacan, que hoje em dia possui um domínio considerável sobre
a obra lacaniana, não apenas juridico mas interpretativo.
Os
manuscritos, as notas, a correspondência não foram nem classificados,
nem listados, nem “depositados”. Eles não existem e essa ausência de
arquivo, tão pesado quanto o excesso de arquivo, é o sintoma de uma
história apagada ou de um processo de apagamento do traço, que permite
muitas vezes à comunidade lacaniana reconstruir uma soberania imaginaria
da obra e da pessoa de Lacan, fundada na impossibilidade do luto da
figura do mestre. Para os fiéis do lacanismo, tudo se passa como se o
próprio Lafan fosse o avalista de uma história no futuro anterior, desde
já escrita, uma história desde já traçada para toda a eternidade. Posto
que nenhum traçonão é acessível, isso parece siginificar que a obra de
Lacan não tem fontes, sem história, sem origem. Da mesma forma o sujeito
Lacan só existe através do ouvi dizer, através de testemunhos frágeis e
fantasmáticos feitos de belas palavras, de histórias piedosas, de
rumores, de anedotas.
Essa concepção a-histórica do texto se
encontra na maneira como o herdeiro legítimo, o genro de Lacan,
Jacques-Alain Miller, co-autor da obra oral de seu sogro desde 1973, a
transcreve. Ele faz dela um enunciado sem nota, sem referência, como se
esse enunciado fosse ainda hoje pronunciado pelo mestre vivo do qual não
se consegue fazer o luto. Tudo se passa portanto no seio dessa ordem
familiar fixada no passado, como se Lacan fosse desde então fora do
tempo, como se, através da sua palavra sempre viva e jamais
historicizada, ele pudesse escapar à usura do tempo a ponto de se tornar
imortal.
Mas contra essa transcrição, outros transcritores se
colocaram em situação contrária procurando todos os traços que o
transcritor legítimo pretendia ocultar. Em consequência, eles
acrescentaram – e continuam a acrescentar – à obra oral um aparato de
notas e referências considerável de tal maneira que tendem a recobrir o
texto. Face à ausência de arquivo, face ao seminário oficial,
despossuído de toda a história, eles tendem a fazer emergir um excesso
de traços e essa atitude deve ser entendida como sintoma de um terror da
perda do arquivo e do poder soberano que atribuem ao mestre.
À
ausência de arquivo, como sintôma de uma concepção dogmática da herança,
é oposta uma tentativa inversa de pesquisa sistemática de traços. De
tanto recolher notas de auditores do seminário, de tanto atribuir ao
ensino oral de Lacan uma significação multidimensional, de tanto lhe
restituir, contra o dogma da ausência de arquivo, uma significação
plural fundada na proliferação de detalhes, de variantes, de
referências, os transcritores não legais transformaram a obra oral de
Lacan em um hipertexto, em uma obra polifônica, irredutível a um
enunciado unívoco.13
O
culto da ausência de arquivo responde não apenas à ideologia do
dogmatismo lacanianao mas a uma certa concepção lacaniana da história.
Lacan de uma certa forma fez com que sua obra oral seja transcrita como
se ela continuasse a ser pronunciada por um mestre vivo e imortal. O
próprio Lacan procurou se projetar em um presente interminável,
inalterável, narcísico, dominado pelo si-mesmo grandioso de um mestre
agindo como ator de um significante chegando sempre à destinação
Igualmente,
atribuiu ao arquivo, e sobretudo ao arquivo escrito, um poder
exorbitante, um poder que vai de encontro ao seu ideal de mestre
imortalizado pela palavra. De um lado, Lacan recusava toda forma de
historicização do pensamento freudiano, se querendo o interprete de uma
nova ortodoxia fundada no retorno aos textos de Freud, e de outro era
obsecado por um desejo de história e pela vontade de deixar para a
posteridade um traço escrito de seu ensinamento e da sua pessoa, um
traço do qual sonhava ter o domínio absoluto. Em outros termos, Lacan
procuravacaptar o arquivo tal qual o sujeito capta sua imagem
segundo o processo do estadio do espelho. De onde essa dialética do
apagamento do reconhecimento, da antecipação, da assunção jubilatória,
que se manifesta aliás na maneira como faz uso da injúria, da máxima, do
slogan, do jogo de palavras e que não cessa de percorrer sua obra.
Tudo
se passa como se esse mestre paradoxal pensasse contra ele mesmo.
Afirmação, de um lado, da soberania do escrito, impossibilidade, de
outro, de deixar uma escritura da obra; recusa das fontes e dos
arquivos, de um lado, exacerbação, de outro, do peso de arquivo;
questionamento radical da soberania do eu, de um lado e, de outro,
desejo de transmitir um si-mesmo inalterável.
É de uma certa
forma para apagar esse apagamento do arquivo e para suprir o arquivo que
falta que eu decidi em 1990 consagrar um livro ao estudo histórico da
gênese do sistema de pensamento de Lacan: suas fontes, sua gênese, sua
construção interna, etc. Para isso, existia é claro sua obra oral e
escrita nas quais se podia explorar todos os tipos de referências e
informações. Mas para o itinerário intelectual e privado, na ausência de
uma “verdadeira” correspondência (apenas 250 cartas) e sem nenhuma nota
de trabalho, eu só tinha à minha disposição os fragmentos de fontes
espalhadas entre todos que haviam conhecido Lacan de outrora, da
infância, o Lacan de antes de Lacan, e onde os arquivos eram
disponíveis.
É portanto em razão desse trabalho de coleção de
arquivos não ter sido feito, no que se refere tanto à vida de Lacan
quanto à sua obra, que meu livro de 1993, Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento acabou
por funcionar, contra minha vontade, como uma biografia quando meu
livro não é uma biografia e não consta a palavra biografia. É nessa
fonte que desde então se apoiam os outros livros que procuram relatar
não apenas os elementos de uma vida de Lacan mas as fontes próprias à
sua obra da qual passei a ser, sem saber, a única detentora, na ausência
de qualquer depósito efetuado pela família. Iss quando meu livro não é
uma biografia, e a palavra biografia não é utilizada.
Portanto eu
“reconstruí” Lacan, um Lacan destituído de rumores e de lendas, mas
hipotético, posto que não avalisado por um traço satisfatório.
Os arquivos de Marie Bonaparte
Agora,
eu gostaria de evocar um outro aspecto do olhar arquivístico: o de
Marie Bonaparte. Foi por intermédio de Serge Lebovici, que propiciou o
encontro da princesa Eugène de Grèce, filha de Marie Bonaparte, com
Célia Bertin,14 única
biografa de Marie Bonaparte, que esta teve acesso a uma quantidade
considerável de documentos – diários, correspondências, agendas – que
nunca haviam sido consultadas. Ela me transmitiu seus arquivos mas
permanece a úncia, ainda hoje, a saber decifrar certos textos da
princesa. Seus manuscritos – compostos principalmente do Sumário de minha análise e de minha correspondência com Freud até 1939 assim como seu Diário de análise,
ainda não são acessíveis aos pesquisadores posto que os arquivos de
Marie Bonaparte só serão abertos em 2020. Em contrapartida, os famosos Cinco cadernos de
uma menina foram publicados enquanto ela estava viva e mais tarde, eu
mesma os reeditei, em 1983, a pedido de Philippe Sollers.15
Marie
Bonaparte tinha mania de arquivo a ponto de recopiar à mão traços da
sua história afim de que nada lhe escapasse. Ela fazia dos seus próprios
arquivos o equivalente de um saber absoluto sobre ela mesma e sobre o
mundo que a cercava, como se esse saber pudesse recobrir toda
possibilidade de distanciamento sobre ela mesma. Tudo deveria estar
organizado, anotado, traçado, como se a falta de traço pudesse fazer
surgir a angustia.
Igualmente, ela deixou como herança à sua
filha uma cópia de todos os seus arquivos depositados de lado na LOC e
nos SFA, e de outro na Bibliothèque Nacionale de France (BNF), em Paris.
Na Library of Congrès,16Marie
Bonaparte depositou os documentos relativos às relações com Freud e na
BNFseus outros manuscritos pessoais. Ernest Jones e Max Schur puderam
consultar sua correspondência com Freud, da qual uma parte foi publicada
em seus livros. Eles tiveram acesso a alguns manuscritos. Outras cartas
foram publicadas na Correspondência geral de Freud.17
Quanto
às cartas trocadas entre Freud e Fliess, entre 1887 e 1904, e que
estiveram na origem do caso Masso, Marie Bonaparte as tinha comprado de
um antiquário. Subsistiram apenas as cartas de Freud, posto que ele
destruiu as de Fliess. Agindo contra a opinião do mestre, que se opunha à
publicação e compra dessas cartas, a princesa o enfrentou, argumentando
que esse arquivo fazia parte do patrimonio cultural e que além disso,
era necessário à compreensão do começo da psicanálise.
Assim, em 1950,18 os herdeiros publicaram essa correspondência, intitulando-a O nascimento da psicanálise, pretendendo
respeitar a vontade de Freud. Eles suprimiram o que supunham que Freud
teria desejado censurar, ou seja sua intimidade. Cento e quarenta cartas
não foram publicadas. Segundo seus editores, elas relatavam fragmentos
da vida pessoal de Freud que não esclareciam nem invalidavam sua
pesquisa científica. De fato, censuraram fatos de uma importancia
crucial para as origens da psicanálise, principalmente a história de
Emma Eckstein, uma paciente tratada por Freud e Fliess, cuja identidade
será revelada pela primeira vez por Max Schur.19
Por
outro lado, o psicanalista americano Frank H. Hartman, que preparava
uma biografia de Loewenstein, ajudou Célia Bertin a redigir o seu livro
em inglês e através dela obteve acesso aos arquivos de Eugènie de Grèce.
Igualmente, solicitou-lhe autorização para traduzir e publicar os
diários inéditos da sua mãe: principalmente o Diário de análise e o famosoSumário.
Eugènie concedeu um acordo de princípio. Então Frank Hartman fotocopiou
os documentos. Onze anos mais tarde, em 1991, Célia Bertin me confiou
uma cópia do Sumário e em 2003, através das minhas indicações, ela reencontrou nos papéis que havia conservado, o Diário de Análise e a cópia das cartas de Freud feita por Marie Bonaparte.20
Hartman
não se contentou em deter os documentos. Ele os utilizou nos Estados
Unidos com a finalidade de rumores e fantasmas logo após a eclosaão do
famoso caso Masson. Nesse contexto, onde era reivindicado e com razão,
por numerosos especialistas, um acesso não censurado ao arquivos da
história da psicanálise, ele informou a imprensa de que havia recebido
autorização de Eugènie para publicar os “diários” de Marie Bonaparte.
Citando Hartman, Daniel Golemand redigiu para o New York Times de
12 de novembro de 1985, um artigo explosivo onde chegou mesmo a citar
algumas “boas páginas” extraídas dos manuscritos da princesa.
Dez
anos mais tarde, nada havia sido publicado, mas Hartmann continuava a
se servir dos documentos “emprestados” para estimular, fornecendo
informações truncadas e fantasmas de cartas roubadas, perdidas e
reencontradas, a curiosidade dos pesquisadores sempre privados de acesso
aos arquivos da LOC.
Entremos agora no detalhe dos arquivos que
contêm inéditos de Freud dos quais vou citar diversas passagens posto
que até hoje ninguém os conhece.
Marie Bonaparte recopiou 111
cartas de Freud em alemão cujos originais encontram-se na LOC. Dessas
111, 7 foram publicadas em extratos por Jones – entre as quais a célebre
carta sobre o incesto – , 9 por Max Schur e 2 no volume geral da
Correspondência de Freud. A elas se somam 15 cartas complementares que
não fazem parte das 111 recopidadas por Maris, mas cujos extratos são
citados por Jones e Schur, o que parece significar que elas as emprestou
e não as recuperou. Em princípio, portanto, Freud escreveu 126 cartas a
Marie Bonaparte, das quais temos traços – durante um período de 12
anos, de 26 de março de 1926 a 16 de junho de 1939.
São Cartas
crepusculares. Já doente fala sem cessar dos seus sofrimentos físicos ao
mesmo tempo que vais se vendo agonizar e assiste a ascensão do nazismo
na Alemanha seguida da Austria. Através dessa correspondência,
assiste-se ao fim de Freud, ao fim de uma certa idéia da psicanálise e
ao fim de um mundo. A morte é incessantemente presente. No meio do
desastre do mundo, Freud reafirma posições essenciais depuradas de tudo
que comporta as suas correspondências de juventude. Ainda que testemunhe
de um grande carinho por Marie Bonaparte, ele não é mais romântido, mas
céptico, pessimista, por vezes feroz, triste e à beira da agonia.
Assim, em uma carta de 21 de abril de 1926, de uma só vez, ele assinala,
como sempre fez, mas com mais radicalidade ainda, sua hostilidade
virulenta à religião em geral e ao judaismo em particular: “Eu me
considero como um dos inimigos mais perigosos da religião, mas eles
parecem (esse que me convidaram) não adivinhar.
Encontra-se também
uma reafirmação da sua crença na origem químico-biológica das psicoses a
propósito de uma paciente de 45 anos tratada por Ernst Simmel pela
psicanálise mais na qual ele recomenta um “tratamento dos ovários”.21
“O
senhor sabe, ele diz, que em tais psicoses, não obteremos nadas pela
análise. Antes de tudo falta o eu normal com o qual pode-se entrar em
relação. Sabemos que os mecanismos das psicoses não são diferentes
daqueles das neuroses mas não dispomos de quantidades suficientes de
excitação que devería se utilizar para modificar esses mecanismos. As
esperanças de desenvolvimento para o futuro residem na química orgânica e
mais precisamente no caminho que a ela conduz passando pela
endocrinologia. Esse futuro está ainda muito longe, mas deveria-se
estudar cada caso de psicose pela análise posto que esse conhecimento
dirigirá mais tarde a terapia química” (15 de novembro de 1930).
No
mesmo ano, em 10 de março, a morte está por lá, sempre presente, com a
idéia da decrepitude do corpo e dos orgãos e a diminuição das faculdades
intelectuais, o que Freud mais temia: “A senhora não acredita que este
verão será o meu último verão ? Pense nisso antes que todos os orgãos
dos sentidos não diminuam, um após o outro, antes que fiquemos talvez
paralizados pela metade pour uma apolepsia e que continuemos a vegetar
como um fragmento e que perdemos, na senilidade, o pouco de estímulo
intelectual que haviamos conseguido manter até lá”.
Outro momento
importante que terá um papel considerável na atitude de neutralidade de
Freud diante da política de Jones de salvamento dq psicanálise durante o
nazismo: o ódio de Wilhelm Reich. Freud preferia que tivessem se
livrado de Reich em 1933 mais do que do nazismo. Ele não era favorável à
política jonesoniana, mas deixou acontecer, preferindo que Reich fosse
excluído, este que preconizava, com razão, uma política, não de
“salvamento”, mas de retirada absoluta diante do Nazismo. O ódio de
Freud se expressa de maneira cega e tendo por pano de fundo a obsessão
pela desagregação na carta de 17 de janeiro de 1932: “Reich fez a
vergonhosa tentativa de poluir nosso jornal com a propaganda
bolchevique. Vocês vão ler que me opus de maneira enérgica”. Em seguida,
ele encadeia também tratando de “bolchevique” Otto Fenichel o que não
era o caso. Sobre Reich: “Eu penso em me livrar e deslocar a redação
para Viena. Tudo se desagrega. Tem cada vez mais gente do lado da
colaboração entre os quais contávamos, que se verificaram inutilizáveis –
Freud emprega muitas vezes essa palavra – e se tornam cada vez mais
negligentes. Com as forças que diminuem, é necessário tomar o leme e
procurar conduzir o barquinho”.
Sobre Ferenczi, em 11 de setembro
de 1932: “Ferenczi passou a beber sériamente. Sua mulher tão
inteligente me disse: “pense nele como em uma criança doente: o senhor
tem razão, a decadência psíquica é pior que o inevitáfel decadência
corporal”.
Com a chegada do nazismo, a cartas se tornaram cada
vez mais crepusculares. Num primeiro momento, Freud pensa que o nazismo
não atravessará para a Austria (carta de 16 de março de 1933): “Não
acredito no perigo aqui e se ele devesse acontecer, estou decidido a
esperar aqui; Se eles me batem à morte, bom, é uma maneira de morrer
como uma outra. Mas é provavelmente uma exageração barata”. Dez dias
mais tarde, em reação a um convite da princesa que lhe oferece sua casa
em Saint-Cloud: “Obrigado pelo seu convite. Estou decidido a não fazer
uso, aliás isso será quase desnecessário. Os ataques de violência na
Alemanha parecem ter se acalmado (…) e a opressão sistemática de Judeus e
a expulsão de todos os empregando apenas acabam de começar. A
perseguição dos judeus e a restrição das liberdades são os únicos pontos
do programa de Hitler. Na Austria, isso não deveria ir muito longe, mas
a covardia dos judeus já se mostrou”.
Em 10 de junho, logo após a
homenagem fúnebre a Ferenczi, ele começa a se dar conta do perigo que
pesa sobre a Austria e escreve: “O mundo está se tornando uma grande
prisão, a pior das células é a Alemanha. O que vai acontecer na célula
austríaca é bastante incerto. Eu prevejo na Alemanha uma surpresa
paradoxal. Eles começaram com um combate mortal contra o bolchevismo e
vão terminar como algo de muito parecido. Exceto talvez pelo fato de que
o bolchevismo adotou um ideal revolucionário, enquanto o hitlerismo tem
um ideal reacionário e medieval. Mas esse mundo me parece não ter muito
mais forças para viver, como se ele estivesse destinado a um fim muito
próximo.”
Em 19 de fevereiro de 1934, Freud começa a considerar
que possa estar em perigo é assinalado pela princesa e Ruth
Mack-Brunschwick: “Qual é o perigo que mais me ameaça ? Sou
relativamente pouco conhecido na Austria. As pessoas mais informadas
sabem apenas que o fato de me maltratar aqui teria muito efeito no
estrangeiro. A última carta inédita data de 16 de junho de 1936: “O
mundo externo é cada vez menos belo. Todo os tipos de barulhos estranhos
nos envolvem sobre o que deve nos acontecer brevemente.
Tomemos agora um outro arquivo: o que a princesa chama de Diário de análise. Trata-se
de 192 páginas datilografadas e numeradas em 28 cadernos, de 30 de
setembro de 1925 (data do início da análise) ao inverno de 1928/29.
São
impressões de Freud, julgamentos, aforismos, fervorosamente coletados,
mas nos quais Marie Bonaparte leva o mestre a se pronunciar sobre
diversos temas. Sempre muito crepusculares, Freud fala sem parar do seu
cancer e da sua morte próxima mas também de sua mãe temendo que ela o
veja morrer antes dela o que seria contrário às leis das gerações.
Evidentemente, ele se lembra de uma cena de Édipo de Sófocles. Mas ele
pensa também na sua filha Anna e diz que ela quis virar analista contra a
vontade dele. Ele teme pelo destino dela após sua morte mas assinala
também que deve sua coragem e sua lucidez ao fato de não estar
angustiado.
Na ocasião de uma visita de Marie au crematório do
cemitério de Viena, Freud diz que irá lá apenas uma vez, que será
queimado e suas cinzas jogadas ao vento. Marie acrescenta uma nota
macabra ao perguntar por exemplo a Freud se ele prefere esqueletos ou
múmias. Sabe-se que a princesa era obcecada pela morte orgânica e pela
decomposição dos corpos.
Sobre a prática da psicanálise, Freud
adota posicionamentos surpreendentes, assinalando, por exemplo, a que
ponto detesta a posição sentada, dizendo: é melhor ficar de pé e andar
ou então ficar deitado. Marie, que nesse momento está em sessão, se vira
e o vê deitado em sua poltrona, as pernas estendidas no banquinho. E
também sobre os limites da análise: “Me coloco acima da psicanálise e
vejo muito bem suas possibilidades e limites. Isso não pode comandar
todas as pulsões e todas as possibilidades do homem. A análise tem sim
um objetivo ascético que não poderá jamais ser atingido. E felizmente,
senão o mundo seria muito monotono e chato”.
A propósito do
dinheiro, ele não acredita nem por um instante, como seus sucessores,
que o pagamento seja necessário ao tratamento. Ao contrário, ele
assinala que a verdadeira felicidade para o analista seria de trabalhar
gratuitamente. Assim, ele inveja aqueles que como Marie, podem faze-lo.
Porque foi obrigado a sustentar sua familia, e principalmente seu pai e
seus filhos, ele diz, que precisou fazer os seus pacientes pagarem. Em
seguida, ficou arruinado com a guerra e em consequência, precisou pedir
honorários bastante elevados, principalmente ao americanos e em dolar.
Ele afirma aliás invejar esses americanos pelos preços elevados que
cobra para poder sobreviver. Ele se sente humilhado por eles. Ao
contrário, ele acrescenta, fazendo alusão ao homem dos lobos, antes da
guerra ele não pedia nenhum pagamento aos russos.
Como sempre – e
isso será aqui amplificado por Marie – a sexualidade está no centro das
proposições de Freud que não renuncia nunca, não à teoria da sedução,
mas à idéia da existência de cenas de sedução: Veja, ele diz, é muito
frequente as governantas a quem são confiadas as crianças dos ricos
acariciarem suas partes genitais para adormece-las, ou então dar-lhes
ópium. Segundo ele, existiria nessa atitude uma revanche social, uma
“vingança do proletariado”. Essas governantas rebaixam as crianças dos
ricos para tê-las com elas e torna-las neuróticas. Sempre muito
anglófilo, Freud abre uma excessão para as babás britanicas. E, aliás,
ele acrescenta, o povo inglês é o maior dos povos pelo seu carater e ele
deve esse privilégio às babás que educaram as crianças inglesas sem
abusar delas. Em um outro caderno, Marie evoca o coito de animais se
perguntando se eles agem como os homens gostando de ver os atos sexuais:
“Será que a observação do coito existe nos animais ?” e Freud responde.
Não se sabe, é difícil perceber o lugar dos orgãos genitais nos animais
e aliás aquilo que vem do animal não é aplicável ao homem”. Fascinada;
Marie replica: “Dizem, no entanto, que a topeira tem uma vagina fechada
com uma pele dura.
Gostaria de encerrar essa exposição com os
posicionamentos de Freud a propósito das mulheres. Nosso grande
emancipador mostra aqui os seus limites clínicos, principalmente a
respeito das putas, empregadas domésticas e atrizes: “Normalmente, ele
diz, as mulheres que têm um espírito elevado, pulsões selvagens e um
intelecto superior são furiosas. Sobretudo quando elas têm poder”. E ele
assinala que Catarina II da Rússia era horrível porque mandou cortar a
língua da sua rival e assassinar seu esposo. E ele acrescenta: “Portamos
julgamentos falsos sobre Nero e Calígula. Não se deve julgá-los com os
nossos critérios atuais. Muitas pessoas gostaria de agir como Nero, mas,
ele podia, nada o impedia de se livrar a esses crimes”. Por que Freud
não aplica o mesmo critério a Catarina II que foi muito menos
sanguinária e patológica que os dois imperadores romanos ?
Enfim,
à questão de Marie “O senhor já analisou prostitutas ?”, ele responde:
“Sim, duas e não foi nada interessante. Elas não eram nem sinceras nem
interessantes, não apreendiam nada.” E ele continua dizendo que na
categoria das mulheres com sexualidade livre, ele prefere as atrizes:
“São em geral putas, mas também mulheres cultas. Eu tentei analisar
algumas mas elas não eram mundialmente conhecidas.22 E
isso se revelou impossível. Essas mulheres não captam a significação da
ironia (o chiste). Por outro lado, a transferência é impossível, elas
não compreendem porque o médico não se interessa por elas (no sentido
sexual) e então é necessário interromper o tratamento.
“Mas,
Freud acrescenta, quase adepto da teoria psiquiátrica da paranóia
ancilar, existe uma outra categoria de mulheres que não podemos
analisar, a das domésticas. Penso muito em uma senhora que me dizia que
sua empregada doméstica era nervosa e me pedia para aceitá-la em
análise. A pobreza não era um obstáculo posto que a patroa se propunha a
pagar o tratamento. O verdadeiro problema, é que essa categoria de
mulheres é movida por um ódio de classe. Elas acreditam que iremos
contar tudo para a patroa. Elas não entendem que gostaríamos de conhecer
o segredo delas com outros fins que os de oprimí-las. E assim, isso
nunca leva a nada”.
__________________________
1 Tradução de C. Lucia M. Valladares de Oliveira.
2 Ernest Jones. La vie et l’œuvre de Sigmund Freud., Tomo 1 (New York, 1953, Paris, P.U.F.., 1958, Tomo 2 (New York, 1955), Paris, P.U.F., 1961, Tomo 3 (New York, 1957), Paris, P.U.F., 1969.
3 Sigmund Freud. Gesammelte Schrifen, 12 volumes, Viena: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1924-1934; Gesammelte Werke (G.W.), 17 volumes, Londres: Imago Publishing Co (1940-1952), Frankfurt : Fischer, 1960-1988; Index, volume XVIII e Nachtragsband, volume de suplementos, realizado por A. Richards e Ilse Grubrich-Simitis, Frankfurt: Fischer, 1987;The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, editado por James Strachey, 24 volumes, Londres: Hogarth Press, 1953-1974.
4 A terceira geração mundial é composta daqueles que não conheceram Freud (Lacan, Winnicott, Kohut, etc). Ver Elisabeth Roudinesco e Michel Plon.Dictionnaire de la Psychanalyse (1997), Paris: Fayard, 2000. Rio de Janeiro: Zahar, 199$)
5 Yosef Hayim Yerushalmi. Série Z (1994), in Le Débat. Une fantaisie archivistique, 92, novembro-dezembro/ 1996, p. 141-152.
6 As cartas de Freud a Fliess foram publicadas em alemão e em inglês : The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess 1887-1904. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1985; Briefe an Wilhelm Fliess 1887-1904. Frankfurt: Fischer, 1986. [No Brasil: A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904. Rio de Janeiro: Imago, 1986. (N.T.)].
7 Jeffrey Moussaïeff Masson. Le réel escamoté. Paris: Aubier-Montaigne, 1984. Ver também Janet Malcolm, Tempête aux archives Freud. (New York: 1984) Paris: P.U.F., 1986.
8 O termo é tomado aqui no seu sentido clássico de revisão da história oficial. Ele não deve ser confundido com o negacionismo.
9 Ernest Jones. La vie et l’œuvre de Sigmund Freud, vol. 1 (New York, 1953), Paris: P.U.F., 1958, p. 324.
10La maison de Freud, Bergasse 19, Vienne. Fotografias de Edmund Engelman e notícia biobliográfica de Peter Gay (New York, 1976), Paris: Seuil, 1979.
11 Henri F. Ellenberger, Médicines de l’âme. Essais d’histoire de la folie et des guérisons psychiques. Paris: Fayard, 1995, p. 92.
12 Jacques Lacan. Ecrits. Paris: Seuil, 1966. Eu narrei em que condições François Wahl publicou os Ecrits, in Jacques Lacan. Esquisse d’une vie, histoire d’un système de pensée. Paris:Fayard, 1993.
13 Penso por exemplo no trabalho de Michel Roussan, melhor transcritor atualmente do seminário de Lacan.
14 Célia Bertin. Marie Bonaparte (1982), Paris, Perrin 2000.
15L’Infini, 2, 1983.
17 Sigmund Freud. Correspondance (Londres 1960). Paris: Gallimard, 1966.
18 Sigmund Freud. La naissance de la psychanalyse (Londres, 1950). Paris: P.U.F., 1956. A tradução integral, realizada em alemão e em inglês por Masson, na França está em fase de preparação há mais de dez anos!
19 Max Schur. La mort dans la vie de Freud (New York, 1972). Paris : Gallimard, 1975.
20 Esses arquivos, fotocopiados por Célia Bertin que me transmitiu em duas etapas, foram em seguida «perdidos» por Tatiana Fruchaud, a filha de Eugénie de Grèce. Quanto aos que haviam sido fotocopiados por Hartman, eles «desapareceram», após sua morte. Aliás é muito provável que Hartman tenha guardado a cópia de Engènie de Grèce sem nunca ter lhe restituido. Graças a Célia Bertin, atualmente, eu sou a única a poder consultá-los.
21 A propósito de convite feito a ele por B‘nai B’rith. Sobre esse tema, ver. Elisabeth Roudinesco, A propos d’une lettre inédite de Freud sur le sionisme et la question des lieux saints, in Cliniques méditerranéennes, 70, 2004.
22 Freud faz aqui alusão a Sarah Bernardt que ele admirava.