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Renato Mezan



Bom dia a todos. Gostaria de iniciar agradecendo ao Prof. Dr. Manoel Berlinck e à Dra. Lucia Valladares a oportunidade de estar com vocês e participar deste colóquio sobre os “Arquivos da Psicanálise”. Pretendo oferecer algumas idéias sobre o trajeto que nossa disciplina percorreu neste cento e poucos anos desde sua fundação por Freud, e discutir certos problemas metodológicos e teóricos que se colocam para a abordagem da sua história.1

Por que escolher este tema? Em primeiro lugar, porque me parece importante que nós, herdeiros desta rica tradição, tenhamos uma noção relativamente clara de como ela se constituiu, bem como daquilo que os diversos personagens que a construíram puderam aportar a uma tarefa necessariamente coletiva. Ora, devido à maneira pela qual costuma circular o conhecimento psicanalítico nas Universidades e nas instituições de formação, o mais comum é que esta trajetória se apresente de forma bastante confusa.

Em outras palavras, não é comum nos depararmos com uma abordagem histórica da Psicanálise. Em geral, as pessoas realizam seu percurso pelos textos essenciais de forma um tanto  desordenada, ao sabor dos encontros que vão se dando – o que não é, necessariamente, ruim. Ir seguindo a pista dos interesses pessoais, partir de um livro ou de um autor para chegar a outros, me parece combinar bastante bem com o espírito de uma disciplina que propõe como método de investigação do psiquismo a livre associação. Há nisto uma certa poesia, um certo romantismo; e sobretudo este modo de tomar contato com a Psicanálise deixa espaço para os interesses, o desejo e as transferências de quem a ela se achega, o que também é positivo.

Contudo, nada impede que o estudo organizado por temas, questões ou autores seja complementado por outro, no contexto de uma matéria específica da História da Psicanálise. Um paralelo para isso pode ser encontrado na formação dos artistas: o aluno de uma faculdade de artes tem aulas de pintura, escultura, gravura, cerâmica – o que corresponderia às diversas dimensões da Psicanálise, digamos a teoria das neuroses, os mecanismos de defesa, o complexo de Édipo, as modalidades de transferência, etc. – e também, durante vários anos, um curso de História da Arte, que começa nas cavernas de Lascaux e vem até as manifestações contemporâneas. Se algo assim existisse no curso de Psicanálise, o estudante o concluiria dispondo de uma visão, ainda que esquemática, das linhas de avanço da disciplina, dos problemas que ela enfrentou, daquilo que nela se transformou e por quê, assim como daquilo que, uma vez sido inventado, foi aceito e passou a fazer parte do seu equipamento teórico ou técnico.

Convém distinguir duas grandes áreas nas quais a abordagem histórica seria interessante. A primeira é a história do movimento psicanalítico, isto é, das pessoas e das instituições. A segunda é a história das idéias e daspráticas, ou seja, das teses sobre o ser humano e das formas de abordar o sofrimento psíquico que singularizam a Psicanálise em meio a outras modalidades psicoterapêuticas. Uma não contradiz a outra, nem a exclui; antes se complementam. Para seguir com o paralelo da História da Arte, na primeira se fala de Michelangelo, Leonardo, Dürer ou Picasso (que na Psicanálise se chamam Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott); a segunda trata, sob uma ótica por assim dizer transversal, de temas como o retrato, a pintura religiosa, o barroco ou o dadaísmo, e também da pintura a óleo ou da gravura com ponta seca – ou seja, recortes que atravessam várias épocas, países e estilos, agrupando artistas individuais na medida em que contribuíram para aquele determinado aspecto da arte. Um equivalente em nosso campo poderia ser o estudo, numa perspectiva histórica, de problemas como o modo de terminar uma análise, a abordagem das psicoses, as diversas concepções do objeto, etc.

Neste percurso, pode ser útil dispor de alguma periodização, identificando ao longo dos cento e poucos anos de existência da Psicanálise algumas etapas bem definidas, algo equivalente à Idade Média, ao Renascimento ou à modernidade em termos da história da civilização. Vou dizer, logo mais, quais períodos me parece interessante distinguir na nossa história regional. Também pode ser útil elaborar uma espécie de geografia do campo, já que, originando-se na Europa Central no início do século XX, a Psicanálise migrou para outras terras e ali se aclimatou: Inglaterra, França, Estados Unidos, América Latina. Ora, estes diferentes climas e solos não deixaram de afetar o conteúdo da disciplina, resultando em uma variedade de estilos perceptível a olho nu: é por isso que podemos falar em Psicanálise francesa, americana ou argentina, e basta lermos textos oriundos de diversos países, ou fazermos uma supervisão com pessoas que de lá vêm nos visitar, para percebermos que não é absurdo falar em modos particulares de apreender o psíquico, em sensibilidades diferentes, em pressupostos tidos evidentes aqui e por discutíveis acolá.2
No capítulo “história do movimento analítico”, o assunto são os analistas que marcaram a disciplina, suas discussões, seus embates, o percurso das instituições que fundaram – numa palavra, os fatos pessoais e coletivos que constituem a trajetória visível da Psicanálise. As discussões sobre o kleinismo na Inglaterra dos anos quarenta, o surgimento da escola lacaniana, a implantação da Psicanálise nos Estados Unidos pelos refugiados do nazismo nos anos trinta e depois, a influência dos analistas vindos da Argentina sobre a Psicanálise brasileira, e outros temas semelhantes, fariam parte deste tipo de estudo. Para isso, dispomos de vários tipos de fontes, que poderíamos – sem pretender à exaustividade – enumerar assim:

a) biografias: começando com as de Freud por Ernest Jones, Peter Gay e Emílio Rodrigué, dispomos  hoje de boas biografias  dos principais expoentes  da disciplina, e elas constituem uma leitura altamente recomendável. Há a de Melanie Klein por Phyllis Grosskurth (Melanie Klein, sua Vida e sua Obra), a de Lacan por Elizabeth Roudinesco, e também de analistas que nos servem de referência (Ferenczi, Bion, Winnicott), além de estudos sobre outros que, por este ou aquele motivo, podem nos interessar (Karen Horney, Ernest Jones, Helene Deutsch, Victor Tausk, e tantos outros). A biografia nos permite compreender o contexto em que o psicanalista viveu e trabalhou, que problemas o atraíram e como chegou às soluções que associamos ao seu nome – hipóteses teóricas, modos de interpretar, etc. Também nos oferece um acesso à pessoa de carne e osso, às suas grandezas e mesquinharias, ao seus aspectos propriamente humanos: é inegável que saber mais sobre estes tópicos contribui poderosamente para desidealizar tais figuras, que, justamente porque as conhecemos quase exclusivamente através da obra escrita, tendem a nos parecer inquestionáveis, inatingíveis em sua genialidade – ou, ao contrário, descarnadas e dogmáticas.
b) correspondências:      com exceção das cartas trocadas com Ferenczi, ainda em curso de publicação, estão disponíveis as que Freud escreveu aos seus discípulos mais importantes, assim como as respostas destes, e também a correspondência entre eles próprios, por exemplo entre Groddeck e Ferenczi. É um material fascinante, que permite seguir a evolução das amizades e das transferências, bem como a elaboração de questões teóricas e clínicas in statu nascendi, já que muitas vezes os autores falam daquilo que os preocupa no momento, e que depois tomará forma definitiva nos artigos e livros que conhecemos.3

c) depoimentos de analisandos: este gênero de escritos me parece sumamente interessante, porque apresenta a análise do ponto de vista do paciente. No caso do Homem dos Lobos, temos a versão do próprio para confrontar com a de Freud (O Homem dos Lobos pelo Homem dos Lobos, editado por Muriel Gardiner); vários pacientes de Freud contaram em primeira pessoa como era ser analisado por ele (Smiley Blanton, Hilda Doolittle, Abraham Kardiner, para só citar uns poucos). E, recentemente, Gérard Haddad publicou O Dia em que Lacan me Adotou, um pungente relato de seu trabalho com o mestre francês, que durou quase dez anos. Podemos assim vislumbrar – ainda que pelo filtro do paciente – o modus operandi daqueles analistas, e perceber como lidavam com as dificuldades da clínica, no fundo não muito diferentes daquelas que nós mesmos temos de enfrentar.

dhistórias de conjunto da Psicanálise em diversos países:     as  mais  conhecidas  são  a História da Psicanálise na França, de Elizabeth Roudinesco, a de Nathan Hale (The Rise and Crisis of Psychoanalysis in the United States), e a de Jorge Balán sobre a Argentina (Cuéntame tu Vida). A utilidade destas leituras é evidente: elas nos fornecem um panorama no qual é possível situar autores, idéias, debates, e seguir o desenvolvimento tanto factual – quem fez o quê, quando e onde – quanto teórico e clínico – quem pensou e inventou o quê, quando e onde. Os que leram a História Social da Literatura e da Arte, de Arnold Hauser, ou The Sleepwalkers, de Arthur Koestler (sobre a história da Física e da Astronomia), sabem como é importante este tipo de livro, que organiza num quadro coerente inúmeras informações até então dispersas. Ele não substitui o contato com as próprias obras, mas nos ensina a vê-las ou a lê-las, exibindo por assim dizer os seus bastidores e as conectando umas com as outras.

Destes quatro tipos de fonte, três nos oferecem uma entrada na História da Psicanálise pela via das pessoas que a praticaram e a pensaram, deixando-nos como testemunho deste esforço os textos sobre os quais nos debruçamos ainda hoje. Elas se detêm no singular (caso das biografias, correspondências e depoimentos), e é pela somatória de diversos “singulares” que chegamos a uma visão mais ampla. A quarta – os estudos de conjunto sobre a Psicanálise num dado contexto nacional, portanto cultural – tomam a via inversa: desenham o quadro mais amplo e nele inserem os elementos individuais, à medida que vão aparecendo no palco. Ainda não existe uma História Geral da Psicanálise, semelhante ao livro de Hauser ou a outros do mesmo gênero, que apresentam de modo panorâmico o percurso das artes, da filosofia e da ciência dos seus inícios aos dias de hoje. Talvez por causa do volume imenso de documentos a compulsar, tanto sobre as pessoas e instituições quanto sobre as idéias e as práticas, ou talvez por falta de suficiente recuo histórico, ninguém se aventurou ainda a escrevê-la. Quem sabe um dia…

A partir destas considerações, o que gostaria de lhes apresentar são dois conjuntos de idéias. O primeiro propõe uma periodização que, espero, não lhes parecerá arbitrária: o objetivo aqui é discernir, no conjunto da história da Psicanálise, algumas etapas no interior das quais se podem perceber certas características comuns. O segundo estabelece uma hipótese acerca da relação entre os vários sistemas psicanalíticos atualmente disponíveis e a obra de Freud: trata-se de uma questão epistemológica, mas, na medida em que os sistemas vieram depois da obra fundadora, de certa forma ela também concerne à história – à história das idéias psicanalíticas.

Marcos de referência

Quando começa essa história? Evidentemente, com Freud, em algum momento da década de 1890. Em qual momento, exatamente, é assunto para discussão. Há os que preferem  uma data precisa – o dia 24/07/1895, ou melhor, a noite desse dia, quando Freud teve o famoso sonho da injeção em Irma. Conhecemos a data e as circunstâncias porque, quando aTraumdeutung ficou pronta, ele confessou a Fliess um desejo seu: “você acredita que, algum dia, se poderá ver nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Aqui, no dia 24 de julho de 1895, revelou-se ao Dr. Sigmund Freud o enigma dos sonhos?4  Não se sabe o que Fliess respondeu, porque as cartas dele se perderam. Mas o fato é que, quando essa correspondência foi publicada (nos anos 50), as associações americanas psicanalíticas se reuniram, mandaram fazer a placa e a colocaram no que sobrou do hotel Bellevue, nas cercanias de Viena.  

Essa é a opção de Emílio Rodrigué, em seu livro O Século da Psicanálise(Escuta). Rodrigué diz que a psicanálise começa quando Freud descobre a forma de interpretar os sonhos, e portanto adquire para universo inconsciente um acesso que ele mesmo denominou de “estrada real”. Por esta razão, a data de nascimento da psicanálise se situaria exatamente aí, em meados de 1895. Já  Abrão Slavutzky usou outro critério: a invenção do termo “psicanálise”, que aparece  pela primeira vez em letra de forma em 1896, no artigo “Obsessões e Fobias”.  Para comemorar o centenário desta data, Slavutzky organizou uma excelente coletânea – História, Clínica e Perspectivas nos Cem Anos da Psicanálise (Artes Médicas) – que apresenta um balanço bastante amplo do que se fez desde então.

Provavelmente se poderiam encontrar motivos para dizer que a Psicanálise começa em 1897, 1898 ou 1899. Mas seria difícil passar daí, pois em novembro deste ano veio a lume A Interpretação dos Sonhos, da qual seria difícil dizer que já não se trata de uma obra psicanalítica.
Seja como for, durante a segunda metade da década de 1890 aquilo que vai se desenvolver sob o nome de Psicanálise já deu seus primeiros frutos. E, se a escolha da “data de nascimento” pode depender de preferências pessoais, parece haver consenso quanto a determiná-la por critérios substantivos: o surgimento do nome, a invenção do método (livre-associação, interpretação), ou os primeiros resultados obtidos pela sua aplicação. Sem fazer disso uma causa pela qual morrer combatendo, eu optaria pelo ano de 1895, porque nele se situa a interpretação do sonho de Irma, nele Freud sistematiza e fundamenta pela primeira vez sua técnica (no capítulo sobre a “Psicoterapia” dos Estudos sobre a Histeria), e redige seu primeiro esboço de uma teoria geral da psique (o Projeto de uma Psicologia para Neurólogos), que, embora tenha permanecido inédito, serviu de matriz para muitos desenvolvimentos posteriores. 

E quanto ao fim? Desde seus primeiros embates com a Psiquiatria, com a psicologia acadêmica e com os preconceitos em geral, a morte da Psicanálise vem sendo anunciada com insistência, evidentemente pelos que prefeririam vê-la ignorada ou definitivamente refutada. Os analistas, porém, seguem trabalhando, e nada indica que estes persistentes avisos fúnebres venham a  em breve ser coroados por um enterro de terceira classe. A psicanálise continua viva, e a prova disso é que este colóquio. Tudo indica que ela tenha entrado no seu segundo século de existência com invejável vitalidade – pelo menos na nossa área cultural, nas Américas e na Europa. 

Como já se trata de um período bastante extenso, parece útil tentar uma divisão dele em etapas. Creio ser possível distinguir nesta trajetória quatro grandes períodos:  o primeiro vai de meados da década de 1890, digamos 1895, até 1918; o segundo seria o período entre as guerras, 1919-1939; um terceiro começa com a década de 1940 e vem até meados dos anos setenta; o último, de 1970 e poucos até os dias atuais.
Como cheguei a esta periodização? O primeiro ponto de corte situa-se no ano de 1939, quando acontecem duas coisas decisivas: primeiro, morre Freud, e portanto desaparece a única autoridade indiscutível do campo, aquele que o fundou e que a qualquer momento podia dizer, de qualquer inovação, se lhe parecia ou não compatível com seus princípios. Também ocorre em 1939 um fato externo à Psicanálise, mas que teve sobre ela uma influência incontestável: o início da Segunda Guerra Mundial. Por ser  uma “ciência judaica”, a Psicanálise era intolerável para os nazistas, que não apenas queimaram os livros de Freud em praça pública, mas ainda perseguiram os analistas (judeus e não-judeus) com a ferocidade que os caracterizava. Procurando salvar a vida, a grande maioria deles emigrou para a Inglaterra e para os Estados Unidos (uns poucos, para outros países, entre os quais o Brasil – foi assim que chegou a São Paulo a primeira analista didata, Adelheid Koch), deslocando desta maneira o centro de gravidade do freudismo da Europa Central para terras mais ao Ocidente. Elizabeth Roudinesco chamou a este movimento, pitorescamente, “a conquista do Oeste”.  

Dos poucos analistas que permaneceram na Alemanha, alguns vieram a aceitar a “arianização” da Psicanálise (um capítulo vergonhoso da nossa história); outros participaram da resistência ao nazismo, e, dentre estes, diversos foram deportados e morreram.5 O resultado disso foi que a psicanálise deixou de falar a sua língua materna, o alemão, e deixou de ter o seu pólo fundamental ali onde tinha nascido e vicejado: a Áustria,  a Hungria e a Alemanha.

O aniquilamento da sua “base fundamental de operações” parece-me suficientemente importante para marcar o fim de uma era; como no mesmo ano – aliás, no mesmo mês de setembro – ocorre a morte de Freud, a história pode ser dividida por este momento em um “antes” e um “depois”: do final do século XIX até 1939, e do fim da guerra até a atualidade. Dentro de cada um desses segmentos, cabe discernir duas etapas, e assim aparecem os quatro de que lhes falei.

No que se refere à primeira – de 1895 até o início da Segunda Guerra – eu colocaria uma marca divisória em torno de 1920, com o que surgem dois sub-períodos: um de 1895 até 1920, outro entre 1920 e 1939. 

Isso por dois motivos. O primeiro é que, nas duas décadas iniciais da sua existência, a psicanálise é essencialmente sinônimo de pensamentode Freud. Se todos os psicanalistas tivessem morrido durante a Primeira Guerra Mundial (e isso poderia ter acontecido, porque eram pouquíssimos, e, tirando Freud, que já tinha passado da idade de combater, os demais foram convocados como médicos militares) –  a psicanálise só subsistiria através das obras e do pensamento de Freud. Claro, houve desde o início outros colaboradores, começando com a Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras, e passando pelos primeiros discípulos (Abraham, Jones, Jung, Ferenczi, etc.). Mas nenhum deles, até 1918 ou 1920, tinha feito contribuições sequer remotamente comparáveis às do próprio Freud. Então, nesse primeiro período temos o criador da disciplina, e alguns aprendizes muitíssimo talentosos, que começam a praticar a psicanálise, desenvolvem aqui e ali algum aspecto da teoria, mas ainda sem que se possa falar de um perfil próprio para cada um.

Isto muda bastante no segundo momento, depois de 1920. E por quê? Em parte, pela maturidade, pelo número de anos de prática; em parte, pela experiência traumática da guerra, que os obrigou a pensar por sua própria cabeça e a desenvolver idéias e técnicas sem a chancela do “pai”. A partir dos anos vinte, vemos esse mesmo grupo básico de psicanalistas empenhados num debate entre eles, com o próprio Freud e com a geração seguinte – aquela que eles próprios começam a analisar e a formar. Exemplo: Karl Abraham (aluno de Freud) recebe em seu divã muitos jovens analistas, dentre os quais Melanie Klein.

A partir dos meados da década de vinte, podemos afirmar que já existem na psicanálise três gerações: Freud (que está beirando os setenta anos), seus primeiros discípulos (na faixa dos quarenta ou cinqüenta), e os jovens lobos (ao redor dos trinta).6 Contrariamente aos primeiros analistas, cuja relação com a Psicanálise é fortemente marcada por uma relação de grande proximidade pessoal com Freud, esta geração toma contato com a figura do fundador através dos seus escritos, e também através da transferência para com seus próprios analistas. Penso que isto favoreceu uma certa distância crítica quanto às idéias freudianas, especialmente àquelas introduzidas no decorrer dos anos vinte, que por sua própria novidade exigiam um posicionamento diverso do que era o caso em relação aos fundamentos da disciplina, estabelecidos há pelo menos duas décadas.

A conseqüência destes dois fatos – maior maturidade dos primeiros discípulos, e caráter mais mediatizado do contato com a obra freudiana por parte destas excelentes cabeças que formam a terceira geração – é que a palavra de Freud já não basta para dirimir uma questão considerada polêmica. Já não se pode dizer, parafraseando o dito eclesiástico:Vindobona locutacausa finita (Viena falou, encerrou-se a discussão7). No período entre o fim da primeira guerra e a grande emigração provocada pela ameaça nazista – digamos, entre 1920 e 1935 para a Alemanha, 1938 para a Áustria – a regra é o debate acirrado, e sobre questões das mais centrais para a disciplina. Estas discussões nos são acessíveis justamente através das fontes que mencionei, além, é claro, dos artigos e livros publicados na época. 

O panorama que se apresenta a quem quiser se adentrar nelas é fascinante. Participam do debate analistas de diferentes sociedades, e, pode-se notar com clareza como estas vão adquirindo um perfil próprio. Na Inglaterra, as idéias de Melanie Klein começam a ganhar aceitação; em Viena, apesar do peso da figura de Freud, novas vozes se fazem ouvir; na Hungria, Ferenczi vai tomando seu caminho próprio, secundado por alunos do porte de Michael Bálint; na Alemanha, o Instituto de Berlim vai produzindo safra após safra de analistas competentes, e a Sociedade alemã se torna a mais importante da Europa. 

Sem entrar em detalhes, é fácil compreender que estes grupos não têm necessariamente os mesmos interesses ou pontos de vista. Por exemplo, por influência de Ferenczi, a escola húngara vai se preocupar mais do que outras com as questões ligadas ao traumático, aos casos muito difíceis, aos tratamentos de pacientes mais regredidos. Ao adentrarem estas searas, vão se deparar com a importância da figura materna nos anos mais primitivos, e desenvolver técnicas mais “maternais” de trabalho. Na Inglaterra, o grande interesse pela análise de crianças faz surgir informações e hipóteses sobre a mente infantil que entram em choque com o já estabelecido: é assim que a psicanálise avança.

Esse crescimento relativamente orgânico nos diversos países favoreceu a emergência de perfis próprios, de temáticas recorrentes e de práticas locais, tanto na condução do tratamento quanto na questão da formação. Por exemplo, na Hungria o supervisor do jovem analista era sempre o seu analista. O fundamento para isso era que o analista pessoal seria a pessoa mais indicada para ajudar o principiante a compreender seus próprios sentimentos e reações em relação aos pacientes. Evidentemente, esse tipo supervisão focaliza sobretudo a contra-transferência, e, para realizá-la, o supervisionando se deitava no divã, como se fosse mais uma sessão da sua análise pessoal. Mas essa não foi a modalidade que finalmente prevaleceu; somos herdeiros da prática de Berlim, onde a supervisão se realizava com outro profissional, visando a proporcionar ao analista em formação o contato com outras maneiras de escutar e de interpretar.           

A primeira característica desse segundo período (anos 1920 a 1940) é portanto a diversidade dos focos de produção da psicanálise. A segunda é a presença da terceira geração de profissionais, que passam a contribuir com suas idéias, não necessariamente idênticas ao  que seus antecessores havia afirmado. É por estes motivos que a opinião de Freud sobre uma série de coisas não é mais universalmente aceita: para dar alguns exemplos, na análise de crianças Melanie Klein acabou triunfando sobre Anna Freud, que contava com o apoio de seu pai; a  idéia de uma pulsão de morte foi enfaticamente rejeitada por muitos analistas; foram contestadas as teses freudianas sobre o desenvolvimento da feminilidade (em especial a centralidade da inveja do pênis na trajetória da menina). Por outro lado, Freud continua criando conceitos (pensem na segunda tópica, na revisão da teoria da angústia, nos estudos sobre o fim do Édipo, nos textos “culturais” da década de vinte), contribuindo a seu modo para i a efervescência das discussões.

Pela primeira vez na história da Psicanálise, surge assim uma situação depluralidade de opiniões, hipóteses e teorias – algumas bastante arrojadas, como as experiências de Ferenczi com a “análise mútua”,8 ou o que ele denominou de “elasticidade” da técnica.           Algumas delas foram muito longe – às vezes longe demais – enquanto outras se incorporaram à técnica padrão: ao utilizarmos determinado conceito ou recurso interpretativo, já sequer suspeitamos a enorme celeuma que ele pode ter despertado quando foi proposto.

Sem me alongar sobre este ponto – que um dia teremos ocasião de tratar com o detalhe que merece – cabe dizer que a “era dos debates” termina com o advento do nazismo. Interrompeu-se a comunicação entre os analistas, que por outro lado tiveram de se adaptar às novas condições vigentes nos países que os acolheram. Na ausência da figura de Freud e nos novos contextos culturais da França, dos Estados Unidos e da Inglaterra, a era dos debates será substituída por uma outra, que forma o terceiro momento da periodização que estou propondo. 

De 1945 aos dias de hoje

Dois traços podem ser aqui reconhecidos com facilidade, conferindo seu perfil específico ao período que vai do fim da guerra até meados da década de setenta. Neste momento, a meu ver, ocorre uma outra mutação, com a qual podemos dizer que se inicia a época atual na história da Psicanálise. O primeiro aspecto é a sedimentação das  idéias e práticas em escolas relativamente estanques; o segundo é a formação do panorama institucional que ainda hoje prevalece, ou seja, a  IPA por um lado, o  lacanismo por outro, ao que, no quarto período, virá se acrescentar o surgimento de instituições independentes destes dois grandes eixos.

A segunda etapa, a dos debates, caracterizou-se por um movimento centrífugo: novas idéias, novas direções de pesquisa, novas práticas. Nesta terceira, observamos o movimento inverso, mais centrípeto: a formação das escolas resulta disso. Sob a influência de mentes profundamente originais, como as de Melanie Klein, Heinz Hartmann, Jacques Lacan e Donald Winnicott, vêm a se formar verdadeiros sistemas de Psicanálise, baseados em visões específicas tanto do que é a mente humana quanto de como se deve conduzir uma análise. Assim se formam as quatro principais escolas: a kleiniana, a da psicologia do ego, a lacaniana e a das relações de objeto. 

Este processo nada teve de pacífico: houve intensas discussões entre os adeptos dos vários mestres, que, por um lado, ajudaram a formular as teorias de cada tendência de modo mais sistemático, e por outro estimularam a “feudalização” da disciplina, já que os debates não se restringiram ao plano teórico, reverberando na organização institucional da própria Psicanálise. Assim, nos Estados Unidos se opuseram os psicanalistas “clássicos” (assim se autodenominavam os partidários da “psicologia do ego”, capitaneados por Heinz Hartmann, e que na Inglaterra seguiam a orientação de Anna Freud) aos “culturalistas”, entre os quais se destacaram Harry Sullivan, Karen Horney e Erich m. Pouco conhecemos no Brasil destas acerbas controvérsias, que resultaram na expulsão de m da Sociedade de Nova York e na formação de sociedades  mais “sullivanianas”. Na Inglaterra, as discussões travadas durante a guerra levaram ao estabelecimento de três grupos dentro da Sociedade Britânica, cada qual com sua linha de pensamento e seu sistema de formação. Na França, como se sabe, acabou ocorrendo a cisão entre os lacanianos e a IPA, conferindo à Psicanálise francesa seu perfil específico.

De modo geral, ocorre uma rigidificação das posições, com o conseqüente isolamento de cada escola dentro dos seus próprios muros. Também assistimos a uma certa acomodação política dos psicanalistas, especialmente nos Estados Unidos: se antes da guerra, na Alemanha e na Áustria, muitos dos que posteriormente vieram a se estabelecer na América do Norte haviam sido ativos na social-democracia ou mesmo no Partido Comunista, o clima da Guerra Fria e o macartismo fizeram surgir um compreensível temor de externar posições radicais (sabe-se o preço que Wilhelm Reich pagou por não seguir esta orientação). 

A Psicanálise anglo-saxônica se torna mais burocratizada, mais previsível, enquanto na França – sob o impulso de Lacan – ela tende a preservar seus vínculos com o pensamento progressista (pense-se na importância que tiveram nos anos cinqüenta Sartre e Merleau-Ponty, bem como na influência do que de mais avançado havia nas ciências humanas da época – o estruturalismo – sobre o pensamento de Lacan). Estes processos vão de par com a grande difusão da Psicanálise nos Estados Unidos: neste momento, ela é praticamente hegemônica na Psiquiatria, e se torna muito comum a referência a Freud e suas idéias (o ato falho, por exemplo, ganha a alcunha de Freudian slip) no cinema, na literatura, nas artes, na educação das crianças: o livro do Dr. Spock, que orientou milhões de mães no pós-guerra, traz uma clara influência da Psicanálise.

O que caracteriza os trinta anos entre 1945 e 1975, assim,  é a coexistência forçada e a intolerânciarecíproca das grandes escolas, e a divulgação em grande escala das noções essenciais da Psicanálise, que perdem a aura de coisa esotérica e passam a ser mais um elemento da cultura em geral. Este fenômeno se verifica mais em alguns países, como os Estados Unidos, menos em outros, como a Inglaterra, mas em todos ele ocorre em medida apreciável. A guerra civil entre os psicanalistas atinge o seu auge; depois, devido à fragmentação em escolas que passam a se ignorar reciprocamente, a poeira vai baixando, e – com exceção dos lacanianos,   para os quais a melhor defesa continua sendo o ataque – instala-se uma convivência na qual, embora exista grande hostilidade, certas regras de civilidade (nos congressos da IPA, por exemplo) podem ser observadas. Por isso, adotei para este período o nome, proposto por Fábio Herrmann, de era das escolas.

Por volta de meados da década de 1970, porém, este panorama sofre uma nova transformação. Assim como no segundo período (1920-1939), é a chegada de uma nova geração que determina a mudança: aqueles que, formados dentro das escolas que acabo de mencionar, começam por vários motivos a questionar a divisão da Psicanálise em baronatos em estado de permanente beligerância. Não é que as escolas tenham deixado de existir: elas permanecem, e inclusive se renovam internamente – é o caso da tendência kleiniana, na qual Bion e depois os neo-kleinianos atuais ampliam e modificam certas idéias que a singularizam, ou da escola lacaniana, que continua a se desenvolver mesmo depois da morte do seu líder e da dissolução da instituição por ele fundada, a École Freudienne de Paris. O movimento é mais complexo, envolvendo diversos fatores que me parecem poder ser descritos sumariamente do seguinte modo:9

a) nos Estados Unidos, assistimos a um decréscimo da hegemonia até então exercida pela psicologia do ego. Surgem críticas a ela, algumas das quais se organizam em tendências como a psicologia do self de Heinz Kohut, enquanto outras, sobretudo na área da Medicina, vêm a questionar os próprios fundamentos da Psicanálise: é o início daquilo que conhecemos como a despsicanalização da Psiquiatria, graças aos novos medicamentos e às pesquisas em neuro-ciências. 

b) surgem, tanto nos Estados Unidos quanto na França, autores que transitam mais facilmente entre as várias escolas, e propõem sínteses pessoais para o conjunto da disciplina, sínteses  estas compostas com aspectos dos vários sistemas, bem como com elementos provenientes da reflexão pessoal dos seus autores. É o caso de Otto Kernberg nos Estados Unidos, ou, na França, de André Green, Joyce McDougall e outros; 

c) na França, o “retorno a Freud” propugnado por Lacan produz um resultado inesperado: diversos analistas concordam que ele é necessário, mas não nos termos propostos pelo mestre. São analistas que passaram pelo círculo de Lacan, mas dele saíram para construir seu próprio pensamento, o qual freqüentemente é de grande originalidade: Piera Aulagnier, Conrad Stein, Jean Laplanche, Claude Le Guen e diversos outros;10

d) verifica-se uma grande expansão do lacanismo, especialmente para os países da América Latina e, nos Estados Unidos, nos departamentos de letras das universidades; 

e) a partir do maio francês, surge a contestação à autoridade da IPA como exclusiva detentora da legitimidade psicanalítica, originando a formação de inúmeras instituições independentes (em São Paulo, entre outras, o curso de Psicanálise do Sedes); no interior da própria IPA, a contestação conduz à reforma de estatutos e a grandes mudanças no regime de formação, tornando-a menos dependente da autoridade do analista didata; 

f) em virtude das mudanças ocorridas na sociedade em geral (revolução feminista, desaparecimento das utopias, massificação do consumo, etc.) surgiram novos desafios para a prática, geralmente compreendidos sob a rubrica das “novas patologias”. Quer sejam novas mesmo, quer sejam apenas manifestações das antigas sob novas roupagens, quer em certos casos uma destas afirmações seja verdadeira e em certos outros a oposta, o fato é que a Psicanálise se vê convocada a operar em situações mais e mais distantes do seu habitat natural – o atendimento individual em consultório, várias vezes por semana, por tempos muito prolongados. O impacto destas novas condições sobre a armação conceitual e sobre o arsenal clínico da Psicanálise ainda está por ser avaliado; mas é visível a diferença de tom e de conteúdo entre os artigos que podemos ler atualmente nas revistas analíticas e o que era publicado, digamos, trinta anos atrás. 

g) em conseqüência disso tudo, o ambiente psicanalítico apresenta-se como menos crispado, mais permeável tanto às discussões internas quanto às críticas que provêm do entorno cultural e das disciplinas conexas. A Psicanálise sai delas enriquecida, às vezes mais humilde em suas pretensões  terapêuticas, às vezes mais consistente em sua articulação teórica.

Poderíamos comparar a situação da nossa disciplina ao que vem ocorrendo na União Européia. As fronteiras não foram abolidas, mas a circulação das pessoas e das mercadorias por elas se tornou muito mais simples e muito mais freqüente. As línguas nacionais continuam sendo faladas, mas a presença de trabalhadores de outros países em cada um dos membros da União passou a ser a regra, não mais a exceção. Da mesma forma, dentro da Psicanálise continuam existindo tendências bastante definidas, mas sem a rigidez de que falei há pouco, e que era a norma quando comecei a estudar Freud, nos anos setenta. Ao lado delas, vemos cada vez mais psicanalistas empenhados em atividades “extramuros”, em reformular sua prática buscando adequá-la às exigências do presente, sem perder de vista o que faz da Psicanálise o que ela é – seus traços fundamentais, por assim dizer. 

E a vitalidade da disciplina consiste precisamente nisso: é por  esta razão que poucas coisas me parecem mais desprovidas de sentido do que o anúncio reiterado da morte da Psicanálise. Não é o que vejo à minha volta, especialmente no Brasil: a quantidade de livros e pesquisas em andamento, sobretudo no âmbito da Universidade (cursos de pós-graduação), a quantidade de colóquios como este, os grupos de estudo informais que se multiplicam pelo país, sugerem precisamente o contrário. 

Com essas breves indicações sobre por que penso ser correto distinguir os quatro períodos na história da nossa disciplina, podemos deixar o tema da periodização e passar para o outro tópico que gostaria de abordar com vocês: a relação entre as tendências contemporâneas e a obra fundadora de Freud.

Um pouco de história das idéias

Este outro tipo de abordagem histórica – agora mais próximo da epistemologia – procura retraçar, na obra de Freud, o ponto de origem das diversas correntes psicanalíticas. Em outras palavras, as escolas que predominaram no terceiro período (1940-1975) se constituem – esta é a hipótese – a partir da seleção, naquilo que Freud escreveu, de um modelo metapsicológico calcado sobre uma matriz clínica, e ampliado para o conjunto do funcionamento psíquico. Agora não estamos mais lidando com os fatos, como no que lhes disse anteriormente; é numa espécie de tempo lógico, para usar o conceito que Victor Goldschmidt propôs no âmbito da História da Filosofia, que se situam estes novos desdobramentos. 

Trata-se portanto de uma história dos conceitos, mas não deste ou daquele em particular (como o de complexo de Édipo ou o de transferência). Tenho em mente a filiação das escolas pós-freudianas a modelos metapsicológicos criados por Freud, idéia que foi apresentada por Paul Bercherie em seu livroGénèse des concepts freudiens (Navarin). Bercherie distingue no conjunto da obra freudiana quatro grandes momentos, que não se excluem reciprocamente, mas antes se sobrepõem. Segundo ele, se tomarmos como fio condutor a teoria geral da mente ou metapsicologia, veremos que Freud construiu não uma, mas quatro delas. Vou mencionar rapidamente quais seriam estes modelos, e em seguida de que modo penso ser possível –modificando um pouco as indicações de Bercherie nas páginas finais do seu livro – conectar cada grande corrente pós-freudiana a um deles.

Uma palavra, antes, sobre a estrutura da teoria psicanalítica, para situar a noção de metapsicologia. Costumo comparar esta estrutura aos gomos de uma laranja, e, mais uma vez, são quatro os que distingo,11 estreitamente interligados, e cuja presença é indispensável para que uma teoria sobre a alma humana possa ser considerada psicanalítica:

a) uma teoria sobre o aparelho psíquico: do que ele é constituído, como funciona, o que o faz mover-se. Para Freud, este é o domínio da metapsicologia: as tópicas e a teoria das pulsões, que, como sabe, ele reformulou diversas vezes ao longo do seu trabalho. O equivalente disso, para Melanie Klein, é a idéia das posições esquizo-paranóide e depressiva; para Lacan, é a organização das três dimensões simbólica, imaginária e real. Para Winnicott, fazem parte do aparelho psíquico regiões como os doisselves, verdadeiro e falso, o ego, a área transicional, etc. Bion distinguirá elementos alfa e beta, e a lista poderia continuar: trata-se sempre de modelos  sobre regiões ou sistemas presentes na psique, de sua interligação, daquilo que os faz funcionar (algum tipo de energia ou estímulo, quer se chame pulsões, angústia, necessidade de segurança ou outra coisa qualquer).

b) um conjunto coerente de hipóteses sobre a evolução psíquica, ou seja, como um bebê se transforma num ser humano adulto. Aqui podemos localizar a teoria das organizações psicossexuais (Freud), a elaboração da posição depressiva (Klein), as fases da vida (Erikson), etc. Há sempre um gradiente ao longo do tempo, que vai de um ponto zero (o nascimento, ou segundo os estudos sobre o psiquismo do feto, até antes disso) até o momento em que se pode dizer que o sujeito está relativamente constituído, com suas capacidades e também com os seus sintomas.

c) um terceiro segmento é a psicopatologia: supondo-se que a mente é assim e evolui assim (de acordo com os dois primeiros segmentos), então ela pode se desarranjar de tais e tais formas. Aqui se busca correlacionar genética e estruturalmente os sintomas com determinados conflitos ou com traumas que impediram a maturação desejável de uma dada pessoa. São estudos sobre  as neuroses, as psicose, perversões, adicções, crises psicossomáticas, etc. De modo geral, quanto mais precoces o trauma ou o conflito, mais graves serão os distúrbios que deles derivam: idéia elaborada com detalhe por Karl Abraham, e que ainda hoje, apesar de o esquema que ele construiu ter sido criticado e reelaborado, continua como horizonte para as elaborações sobre as diversas patologias: por exemplo, o vínculo entre uma deficiente organização do narcisismo e as psicoses, a relação entre a problemática  Édipo/castração e as neuroses, o laço entre a falha básica (Bálint) ou o insuficiente cuidado materno (Winnicott) para os estados borderline, etc. 

d) uma teoria do processo analítico: dado que a mente é assim, evolui assim e se desarranja destas determinadas maneiras, o que é possível fazer do ponto de vista terapêutico? Idéias como as de transferência e resistência, ou o estudo do que se pode interpretar e do que é “irrepresentável”, fazem parte deste quarto segmento. 

Com isto, podemos voltar à proposta de Paul Bercherie. Para ele, o núcleo duro da Psicanálise, em termos epistemológicos, é a metapsicologia. E como Freud construiu suas metapsicologias? A partir do estudo de quatro diferentes patologias, que deram origem a modelos baseados sucessivamente na histeria, na neurose obsessiva, nas psicoses e na melancolia. Em resumo, se tomo como matriz clínica – assim eu defini, há bastante tempo, a patologia de referência para cada modelo – a histeria, terei uma certa imagem de como é e de como funciona a mente. Mas se tomo como matriz clínica a neurose obsessiva, ela me imporá um outromodelo, igualmente passível de generalização: o peso da agressividade, do ódio e dos impulsos sádico-controladores será bem maior do que o que poderia sugerir o estudo da histeria. Em outras palavras: dependendo de por qual prisma focalizo o funcionamento mental, certas características irão se destacar com mais intensidade do que outras.12

No modelo que Freud constrói na Interpretação dos Sonhos, largamente calcado sobre a histeria, a agressividade e o ódio não têm um papel importante. É claro que a histérica, como qualquer pessoa, sente raiva; na arquitetura da histeria, contudo, o lugar metapsicológico desse sentimento é secundário. É o estudo da neurose obsessiva que alerta Freud para a importância do ódio; mas, como é possível comprovar, ele não se limita a acrescentar ao seu modelo esta nova dimensão. Ao contrário,  para dar conta do ódio ele elabora um novo modelo, que organiza por exemplo a discussão das pulsões nos textos de 1915. O mesmo vale para o narcisismo, teorizado primeiramente a partir da paranóia de Schreber: ele dá origem a um terceiro modelo da psique, que oporá as tendências que visam o objeto às que o recusam e querem manter intacta a mônada narcísica (um exemplo da influência deste terceiro modelo é a invenção do conceito de pulsão de morte, a qual promove o desligamento dos vínculos e o desinvestimento do objeto, inclusive do objeto “ego próprio”, com isso dando a impressão de um retorno ao inorgânico). Por fim, Bercherie sugere – e penso que ele tem razão – que o estudo da melancolia origina um quarto modelo, baseado na introjeção do objeto perdido, que virá a desaguar no importantíssimo conceito de identificação e numa concepção da psique na qual o objeto tem um papel estruturador, e não apenas – como no calcado sobre a histeria – uma função contingente.

A idéia que eu gostaria de submeter a vocês é que as grandes escolas de psicanálise tenham escolhido como base um desses modelos. Por que? Porque cada uma tem o seu Freud. O Freud de Lacan não é o mesmo de Melanie Klein, nem o mesmo de Winnicott ou Bion. É claro que todos conheciam bem a obra fundadora, mas aquilo que eles privilegiam não é o mesmo. Basta ver as referências que cada um faz a determinadas obras, enquanto outras jamais são citadas, e muito menos empregadas para a reflexão. Bion, por exemplo, meditou a fundo sobre “Os dois princípios do funcionamento psíquico”,  de onde tira a idéia de continente/conteúdo, enquanto Lacan o menciona raramente, se é que o faz em algum momento. Por outro lado, o mestre francês faz grande caso do livro sobre o chiste, que, tanto quanto eu saiba, não tem nenhum papel na constituição do pensamento de Melanie Klein. 

Estou sugerindo que isso não é apenas casual: é fruto de uma seleção na obra fundadora que se articula com os interesses clínicos de cada autor, interesses que o conduzem a tomar como matriz clínica de sua reflexão uma determinada patologia – e é por isso que ele privilegia um dos modelos elaborados por Freud, obviamente aquele que toma por objeto a mesmapatologia. 

Um exemplo: a escola das relações de objeto vai dar um papel importantíssimo à identificação como modo de constituição do sujeito; por isso, será conduzida a privilegiar o modelo calcado sobre a melancolia. Seria possível, acredito, ler os trabalhos de Bálint e de Winnicott a partir desta ótica, mostrando no detalhe como eles reelaboram os aspectos da perda, do luto e da idealização como fundamentais para a constituição do sujeito, ressaltando a importância de o ambiente apresentar condições suficientemente não-traumáticas para que essa constituição possa se operar satisfatoriamente. Um outro exemplo seria o primeiro sistema propriamente kleiniano, com sua ênfase na  agressividade, que obviamente toma como parâmetro a neurose obsessiva – aliás, se lermos com atenção A Psicanálise da Criança, veremos que boa parte dos seus pequenos pacientes apresentam sintomas ou estruturas obsessivas. 

Em resumo, pode-se dizer que a teoria que cada qual vai formulando tem como uma de suas bases a experiência clínica com um determinado tipo de patologia, a qual se torna exemplar para a futura escola:  a partir disso, a obra de Freud é lida num certo ângulo, o que resulta no que acabo de dizer sobre os vários “Freuds”. Como base para a compreensão do desenvolvimentos pós-freudianos, este esquema me parece bastante útil e flexível; não devemos tomá-lo por única chave de leitura, mas, se utilizado com bom senso, pode ajudar bastante para compreender a cartografia da Psicanálise atual. 

Bem: creio que isso basta para iniciarmos o debate. Espero ter despertado o interesse de vocês para as possibilidades da história da psicanálise, que é um assunto inesgotável, mas a meu ver fascinante.  

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1 Uma primeira versão de algumas destas propostas, especialmente sobre a periodização,  foi publicada na revista Psychê nº 5, em 1998, sob o título “Etapas na história da Psicanálise”. Para uma discussão mais aprofundada das questões epistemológicas e metodológicas suscitadas pela idéia de que a Psicanálise tem uma história, ver Renato Mezan, “Questões de Método”,Jornal de Psicanálise, número 60, 2000 (publicação do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo). 

2 Um exemplo de como a Psicanálise foi afetada por um meio particularmente denso pode ser encontrado em Renato Mezan, “A recepção da Psicanálise na França”, in Interfaces da Psicanálise, São Paulo, 2002, Companhia das Letras, p.196-220.

3 Sobre a correspondência de Freud, ver Renato Mezan, “As Cartas de Freud”, in Interfaces…

4 Cf. carta 137 a Fliess, 12.06.1900, in Los Orígenes del psicoanálisis, Madri, Biblioteca Nueva, tomo III, p. 3642.

5 A este respeito, ver Chaim Samuel Katz (org.), Psicanálise e Nazismo, Rio de Janeiro, Campus, 1985.

6 Embora nascida apenas cinco anos depois de Abraham (1882), Melanie Klein só começou sua análise com Ferenczi aos 35 anos, e seu segundo tratamento, com o próprio Abraham, aos 42. Isto coloca sua formação nos anos vinte, e portanto a considero parte da  terceira geração, juntamente com  Anna Freud, Wilhelm Reich, Otto Fenichel, Sandor Radó, Franz Alexander, Michael Bálint, etc.

7Roma locuta, causa finita: assim se diz quando o Papa encerra, com sua autoridade de Vigário de Cristo, uma disputa teológica.

8 A este respeito, ver os artigos de Luis Carlos Menezes, Luiz Meyer e Anna Verônica Mautner no número 10 da revista Percurso (1993), dedicado à obra de Ferenczi.

9 Procurei dar uma descrição mais pormenorizada do panorama que se organizou de 1975 para cá em “Figura e fundo: notas sobre o panorama psicanalítico no Brasil”, Percurso nº 20, 1997; este texto também está publicado na coletânea Interfaces da Psicanálise, acrescido de uma cronologia de fatos e de obras que marcaram o período.

10 A este respeito, ver Renato Mezan, “Três concepções do originário”, inFiguras da Teoria Psicanalítica (São Paulo, Edusp/Escuta, 1995).

11Até redigir estas notas, não me havia dado conta da onipresença do número quatro nos esquemas que estou propondo (quatro fontes para a história do movimento, quatro períodos, quatro segmentos na teoria, logo mais quatro escolas pós-freudianas derivadas dos quatro modelos metapsicológicos freudianos…A lembrança de uma aventura de Sherlock Holmes na qual o “signo dos quatro” é a chave para desvendar o mistério me forneceu o título para esta conferência. E talvez a associação não seja tão descabida: pois o trabalho do detetive e o do historiador consistem, ambos, em reconstituir a partir de indícios dispersos o que se passou, a fim de “contar o causo como o causo foi”.

12 Apresentei esta idéia pela primeira vez em 1985, no artigo “Klein, Lacan: para além dos monólogos cruzados”, disponível em A Vingança da Esfinge(segunda edição, Casa do Psicólogo, 2002). Uma elaboração mais detalhada, com ênfase na matriz constituída pela neurose obsessiva, encontra-se no capítulo 5 de Escrever a Clínica (Casa do Psicólogo, 1998)  a propósito das primeiras sessões do Homem dos Ratos.