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Ines Loureiro
Psicanálise e Romantismo
Os
estudos que rastreiam as intersecções entre Psicanálise e Romantismo
possuem já uma longa história. Tiveram início ainda durante a vida de
Freud, que chegou a conhecer os ensaios do escritor Thomas Mann
(1929/1988, 1936/1976); o primeiro deles deu ensejo àquela que é
praticamente sua única declaração explícita sobre o tema, em carta a Lou
Salomé (28/7/1929):
xxxxxO
ensaio de Thomas Mann me honra, sem dúvida. É como se acabasse de dar
os últimos retoques num artigo sobre o romantismo, e lhe pedissem que
escrevesse algo a meu respeito; e como se, em virtude desse encargo,
tivesse aplicado uma chapa de psicanálise, como dizem os ebanistas, à
parte anterior e posterior de seu artigo, cuja parte principal está
constituída de outra madeira, bem diferente. Contudo, sempre que Mann se
resolve a dizer algo, o resultado costuma ser sólido (cf. Loureiro, 2002, p. 29).2
A
partir de então, desenvolve-se uma extensa tradição crítica dedicada ao
estabelecimento de semelhanças e contrastes entre os dois saberes, de
modo a explicitar os vínculos e “filiações” da Psicanálise com o
pensamento romântico ou, o contrário, com tendências supostamente
anti-românticas (quaisquer que sejam as designações estas que recebam:
Iluminismo, Classicismo, racionalismo, cientificismo, e assim por
diante).
É um debate que, dentre outras questões,
coloca de maneira exemplar o entrelaçamento indeslindável que por vezes
acontece entre história e epistemologia de uma disciplina. Sem dúvida é
um tema que integra o terreno da história da Psicanálise (já que diz
respeito a uma constelação cultural presente nas origens da teoria
freudiana e na formação intelectual de seu fundador), mas cuja discussão
só pode prosseguir e se aprofundar por meio de um trabalho propriamente
epistemológico. Por ora, na falta de novos documentos e fontes que
tragam dados inéditos a esse respeito (quiçá alguma desconhecida
declaração de Freud…), a reflexão só pode avançar pelo estudo de
certas temáticas e conceitos, seus processos de gênese, transformação,
articulação com outras noções, e assim por diante. Enfim, uma
investigação que busca detectar se e em que medida o
Romantismo constitui um ingrediente significativo na construção do
pensamento freudiano é uma investigação em que, necessariamente,
história e epistemologia são indissociáveis.3
Na
literatura dedicada à confrontação Psicanálise/Romantismo, os autores
se servem de vários “eixos” para proceder às comparações, muitas vezes
guiados mais pelo intuito em estabelecer semelhanças/continuidades entre
os dois campos do que pela disponibilidade em se deparar com diferenças
irredutíveis ou, ainda, com relações paradoxais entre eles.
Freqüentemente apontam a convergência de interesses temáticos (amor,
sonho, morte, loucura) e de algumas noções que Freud teria “importado”
do pensamento romântico (pulsão, sublimação, Witz e, sobretudo,
a própria noção de inconsciente). Alguns se dedicam a mapear a
ocorrência de citações de autores que consideram românticos no texto de
Freud; outros lançam mão de episódios biográficos, o que gera analogias
superficiais e de gosto bastante duvidoso (ex: Freud é supersticioso,
logo romântico; Freud não aprecia música, portanto é racionalista e
não-romântico, e outras falácias do gênero).
Mas para além de
eventuais deslizes, a bibliografia consultada padece de um problema
crucial: carece de uma noção razoavelmente clara, delimitada e
operacional acerca do Romantismo. Ou seja, o que cada autor considera
“romântico” varia imensamente e raramente se busca justificar porque
este ou aquele aspecto seria característico do Romantismo. Em suma,
ficamos à mercê das idiossincrasias dos comentadores.
Em
trabalho anterior (Loureiro, 2002), procurei circunscrever o que
entendia por Romantismo, de modo a obter um parâmetro mínimo a partir do
qual pudesse retomar certos aspectos da teoria freudiana; ou seja,
tentei construir uma espécie de “metro” – a noção de estilo romântico –
a partir do qual fosse possível pudesse verificar (ou não) possíveis
afinidades ou discrepâncias entre Psicanálise e Romantismo. Grosso modo, o estilo romântico se caracteriza por um sentimento de ruptura, vivida como perda,
em todos os setores da vida social. Tal sentimento é acompanhado de uma
reflexão crítica sobre a realidade. Admite-se que essa ruptura é
radical e definitiva, mas ainda se conserva a esperança de que tal
estado de coisas seja reversível; ou seja, que se restaure a unidade e a
plenitude perdidas, que se reconquiste a totalidade tão almejada.
Assim, os anseios tipicamente românticos sempre apontam para um fascínio
com o Todo, o Um, o Absoluto.
Sobre o monismo/dualismo
Um
dos principais eixos temáticos utilizados pela tradição crítica para
pensar as relações entre teoria freudiana e Romantismo é o problema do
monismo/dualismo. De forma geral (e um tanto simplificada), os
comentadores consideram o fato de Freud sustentar os dualismos
pulsionais, bem como o de exercitar um raciocínio de tipo dualista
(operando com pares de conceitos, no mais das vezes apontados como
antagônicos ou, no mínimo, contrastantes; ex: princípio do prazer /
princípio da realidade) como um aspecto em que ele se afasta da tradição
romântica. É como se tais dualismos conceituais, que não se deixam
dissolver ou reduzir a um ou outro de seus pólos constituintes,
provassem que Freud não compartilha deste “fascínio pelo um” que acabo
de assinalar como característico do Romantismo. Ou, o contrário, quando
acreditam que os dualismos freudianos tendem a se encaminhar para uma
diluição (cf. Bernard Rigaux, 1986), isso revelaria algum tipo de
afinidade com o Romantismo.
Ora, proponho que nos aproximemos
desse argumento de modo a desfazer alguns equívocos. Embora cheguemos à
mesma conclusão (isto é: tomando como vértice a questão
monismo/dualismo, Freud está longe de ser um romântico), tomaremos
outros meandros para aceder a ela. Do meu ponto de vista, a questão do
monismo /dualismo requer ser desdobrada emplanos diferentes; ou seja, deve-se discriminar as dimensões em que estamos discutindo o assunto.
Os comentadores geralmente se atêm ao nível teórico-conceitual. Isto
é, aludem aos vários dualismos conceituais presentes na teoria
(princípio do prazer/realidade, processo primário/secundário, energia
livre/ligada, inconsciente/ pré-consciente-consciente, etc); enfatizam,
sobretudo, a formulação dos dois grandes dualismos pulsionais (pulsões de autoconservação/ sexuais e, após 1920, pulsão vida/ morte).
Sugiro,
no entanto, que nos voltemos para outras duas dimensões que, embora
evidentemente entrelaçadas com a dimensão conceitual, não chegam a se
confundir com ela. É preciso distinguir pelo menos dois outros planos em que a discussão monismo/dualismo se coloca.
Primeiramente, no plano filosófico fundamental, ontológico (vale dizer, no nível mais básico que se refere às substâncias que compõem o mundo), Freud é, sem dúvida, um monista. Ele recusa a existência de duas substâncias distintas, matéria e Espírito. Se
acompanharmos a discussão de Paul-Laurent Assoun (1983) sobre a
epistemologia freudiana, veremos que Freud assume e compartilha alguns
pressupostos centrais da ciência de seu tempo. Entre eles, o postulado
de que só existe matéria, isto é, há apenas forças físico-químicas.
Por isso, a explicação dos fenômenos de todos os tipos (inclusive
humanos) deve necessariamente remeter a esta ordem de fatores. Daí a
firme convicção freudiana de que a Psicanálise é uma Ciência Natural.
Já
neste nível ontológico, constatamos uma diferença fundamental em
relação ao Romantismo. Na base do pensamento romântico encontra-se
também um monismo, mas de tipo vitalista. O vitalismo postula que os fenômenos vitais são irredutíveis aos
elementos físico-químicos. O mundo é concebido como um grande organismo
vivo, em constante pulsação e movimento; o elemento vital é um
princípio unitário que atravessa ou impregna todas as modalidades de ser
e de matéria.4 Na
verdade, não cabe pensar em termos de duas substâncias, e sim numa
unidade cósmica, a “natureza espiritualizada” (ou “espírito
naturalizado”). Se há indícios de que Freud teria flertado com a Naturphilosophie em
sua juventude (lembre-se da célebre referência segundo a qual a opção
pela carreira de Medicina teria se dado ao escutar, numa conferência
pública, o “Hino à Natureza”, então atribuído a Goethe), o vitalismo lhe
provoca arrepios na maturidade. Assim, já neste patamar, observa-se que
Freud se afasta decisivamente da ontologia romântica.
Mas poderíamos situar a discussão monismo/dualismo em um segundo plano, que, na falta de melhor nome, seria possível chamar de subjetividade.
No plano dos sujeitos empíricos – o dos neuróticos que Freud escuta e
trata em sua clínica – o debate monismo/dualismo pode ser esquematizado
em torno de um aspecto fundamental: corpo/mente, orgânico/psíquico,
soma/psique.5 Sabemos
que, em Freud, essas ordens se relacionam de modo hiper-complexo –
relações de derivação, delegação, oposição, entre tantas outras.
Encontramo-nos em pleno coração da teoria freudiana, no cerne dos
enigmas a que remetem o conceito de pulsão – conceito-limite por excelência, fronteira que demarca contigüidade, obstáculo intransponível à reflexão.
Neste
plano, parece que Freud faz questão de garantir e resguardar uma certa
antinomia corpo/alma. Na correspondência com o pastor Oskar Pfister
(1873-1956) e, principalmente, com o médico W.G. Groddeck (1866-1934),
Freud tenta assegurar que existe descontinuidade e heterogeneidade
(leia-se: diferença)entre essas duas ordens.
À afirmação de
Groddeck segundo a qual a distinção corpo/alma não passa de uma
distinção nominal, Freud responde, em 5/6/1917: “Porque desde sua bela
base V.S. se lança à mística, suprime a diferença entre o anímico e o corporal, e se aferra a teorias filosóficas que não vêm ao caso?”. E conclui, após uma série de outras considerações relevantes:
xxxxxTemo que V.S. seja também um filósofo e tenha a inclinação monista de menosprezar as belas diferenças da natureza em prol da sedutora unidade. Acaso com ela nos livramos das diferenças? (apudLoureiro, 2002, p. 275 e 276, grifos meus).
Neste campo, pois, assistimos a uma defesa enérgica da posição dualista.
Em
suma, Freud critica o monismo de Groddeck que se manifesta no
apagamento das distinções entre físico e psíquico, insinuando que esta é
uma postura mística e “filosófica”. O interesse de Freud situa-se, ao
contrário, na exploração dos contrastes e heterogeneidades que o monismo
tende a diluir ou eliminar. Interessa-se sobretudo por manter a
especificidade do psíquico – o “quinhão” que caberia à Psicanálise no
território mais amplo das ciências naturais.
O leitor talvez se
pergunte como é possível Freud sustentar uma postura monista no plano
ontológico e dualista no plano das subjetividades empíricas. Bem, se é
que há uma (ou apenas uma) resposta possível a esta questão, certamente
ela requer um “lembrete” para que possa ser devidamente encaminhada: embora
a dualidade orgânico/psíquico seja irredutível, os processos que se dão
em ambas dimensões são concebidos apenas em termos materiais, isto é, de forças e energias.
Uma questão de diferença
Creio que o apreço de Freud pelo dualismo tem, antes de tudo, um caráterinstrumental: é uma ferramenta, um meio de tentar sublinhar e preservar diferenças. São
elas que nos impedem de atolar na “mistura originária” (como diz em
carta a Lou Salomé, 30/7/1915), são elas o motor e combustível do
desejo. Assim, a preocupação de Freud parece ser, para além da ênfase da
diversidade realmente existente no mundo, a de garantir que a produção
de diversidade (e, conseqüentemente, de conflito) instale-se no âmago do
aparelho psíquico, como uma espécie de “dínamo” resistente aos
movimentos unificadores e identitários.
No dizer de Figueiredo (1999, p. 106-7),
xxxxx(…)
é muito provável que o dualismo fosse também um limite na tentativa de
Freud escapar do monismo e de suas implicações metafísicas. O reino do
Uno é, exatamente, o reino da estabilidade sem tensões, o reino do
não-conflito, ou, pelo menos, do conflito concebido como não-essencial
e, nesta medida, superável. É o reino da morte. O dualismo, ao
contrário, parece proporcionar uma visão essencialmente dinâmica e
vital. Esta é a opção de Freud.
Eis o ponto onde pretendia chegar: a atribuição de um caráter mortífero ao Uno e, sobretudo, o sólido apreço freudiano à diferença constituem indicadores que, apesar de gerais, atestam uma profunda divergência de Freud em relação aos ideais mais
tipicamente românticos. De modo que só resta concluir sugerindo que,
tautologias à parte, no cerne da diferença Psicanálise/Romantismo habita
a bela e vital diferença.
_________________________
1 Texto
produzido a partir da apresentação no I Colóquio Internacional Arquivos
da Psicanálise. O material aqui apresentado encontra-se discutido mais
amplamente em Loureiro (2002).
2 Versão integral desta carta encontra-se disponível em Sigmund Freud – Epistolário (1873-1939); a tradução aqui utilizada é de Renato Mezan (1986, p. 601).
3 Sobre as relações entre história e epistemologia no âmbito da Psicanálise, cf. Mezan (2002)
4 Para
uma discussão detalhada sobre o debate monismo/dualismo no mundo
germânico fim-de-século, bem como sobre as querelas envolvendo
mecanicismo e as várias versões do vitalismo, cf. Nagy (2003).
5 Não
cabe entrar aqui na distinção desses termos; utilizo-os em sentido
lato, apenas para marcar possíveis formulações de tal dicotomia.
Referências Bibliográficas
ASSOUN, P.-L. (1983) Introdução à epistemologia freudiana Rio de Janeiro: Imago.
FIGUEIREDO, L.C.M. (1999) Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta.
LOUREIRO, I.R.B. (2002) O carvalho e o pinheiro – Freud e o estilo romântico São Paulo: Escuta/Fapesp.
MANN, T. (1929/1988) “A posição de Freud na moderna história das idéias”, in ROSENFELD, A. (org.): Ensaios São Paulo: Perspectiva.
_____. (1936/1976) “Freud et l’avenir”, in Jaccard, R. (prés.): Freud, jugements et témoignages. Paris: PUF.
MEZAN, R. (2002) “Sobre a epistemologia da psicanálise”, in Interfaces da Psicanálise São Paulo: Companhia das Letras.
_____. (1986) Freud pensador da cultura 2a. ed., São Paulo: Brasiliense.
NAGY, M. (2003) Questões filosóficas na psicologia de C.G. Jung. Petrópolis: Vozes.
RIGAUX, B. (1986) “Sur le romantisme de Freud”. Psychanalyse à l’Université, 11, 44, octobre 1986.