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Cecília Maria Bouças Coimbra
“Finalmente, é a prática que constitui a única continuidade do passado ao presente, ou, inversamente, a maneira como o presente explica o passado (…). Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno, mas em favor, espero, de um tempo que virá, como dizia Nietzsche”.(Deleuze)
Pensar
algumas práticas “psi” que atravessam nosso presente no sentido de
repensá-las, enfrentá-las e de perceber algumas de nossas possibilidades
de resistência hoje é o desafio que este texto nos coloca. Daí, trazer
um pouco a história de algumas práticas psicanalíticas num momento de
terrorismo de Estado vivido em um passado recente por todos nós é falar
das resistências de hoje, é não nos contentarmos “em dizer que as velhas
lutas não valem mais”,1 é
percebermos que podemos estar participando da construção de modos de
subjetivação, de identidades e modelos que estiveram presentes naquele
passado recente e que hoje se atualizam de outras formas.
Para
tal, proponho adentrarmos no território “psi” que vai se fortalecendo –
fundamentalmente nos anos 70, em nosso país – em especial em cima da
produção da “crise da família moderna”, da carência, da falta.
Ao
apontar os principais grupos de formação psicanalítica no Rio de
Janeiro e São Paulo, pretendo cotejar suas práticas, as subjetividades
dominantes, os movimentos sociais e alguns processos de singularização,
no sentido de entender essas práticas, seus contextos e os saberes por
elas produzidos e fortalecidos.
O espaço “psi”, que se estrutura
no Brasil nos anos 30, 40 e 50, é feito em cima do tratamento de
crianças “problemas”, crianças com “dificuldades” de aprendizagem e/ou
emocionais.
Naquele período, os saberes sobre a infância – não somente no Brasil, mas também nos Estados Unidos e Europa – ampliam-se,2 surgindo preocupações com a chamada infância “desadaptada”, com as crianças “difíceis”.
Nas entrevistas contidas em minha tese de Doutorado3 –
notadamente com psicanalistas mulheres, de formação médica ou
psicológica – foi registrada a atuação de algumas em órgãos
governamentais (federais, estaduais e/ou municipais) nas décadas de 40,
50 e 60 – tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro – em Serviços de
Higiene Mental, Centros de Orientação Infantil e Juvenil, Setores de
Psicologia Clínica, etc. Nestes órgãos, inicialmente é dada assistência à
“criança-problema” e, se necessário, orientação aos pais e professores.4 De
início, estes serviços são de cunho puramente diagnóstico (aplicação de
testes), com algum acompanhamento psicopedagógico aos pais e
professores.5 Gradativamente,
muitos desses serviços passam para o atendimento clínico a essas
crianças “problema”. Da adaptação infantil, caminha-se para a
intervenção na vida sexual e familiar, prática bastante desenvolvida no
Brasil nos anos 1970. Ao lado disso, cresce a importância dada à
prevenção e o circuito escola-família se fecha.
xxxxx“Partindo
da escola, dos problemas de desadaptação escolar, passou-se para os
problemas da procriação, da vida familiar e da harmonia conjugal, para,
finalmente, voltar à escola com a instauração da educação sexual. Nesse
circuito escola-família, o operador de cada etapa foi a psicanálise. È
ela quem autoriza o deslocamento dos problemas de aproveitamento escolar
para os de harmonia familiar. É ainda ela quem instruí uma educação
sexual não mais centrada nas doenças venéreas, mas na questão do
equilíbrio mental e afetivo. Face ao desdobramento dos psicólogos, dos
conselheiros e dos educadores que se satelizam em torno da relação
escola-família não basta dizer que aí passou a psicanálise. Seria mais
exato dizer, embora jogando um pouco com as palavras, que é por aí através desse ativismo familiar-escolar que ela pôde passar”.6 (grifo do autor)
Em
decorrência disso, a questão familiar se torna a grande locomotiva pela
qual a psicanálise avança a toda velocidade no Brasil dos anos 1960 e
1970.
Não almejo aqui fazer uma história da psicanálise no Brasil
no período da ditadura militar. Pretendo, sim, apontar como essas
práticas vão se proliferar em determinado momento histórico; como se dá
sua expansão: o“boom psi”, e que instituições e dispositivos serão instrumentalizados e fortalecidos por elas.
Muitas
informações que guiaram minha pesquisa partiram de dois trabalhos que
mostram a expansão da psicanálise em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em
São Paulo, Roberto Yutaka Sagawa7 realiza
um aprofundado estudo da psicanálise “oficial” desde os anos 20 até os
80. No Rio de Janeiro, Ana Cristina Costa Figueiredo8 fala
da difusão do movimento psicanalítico de 1970 a 1983. Estas leituras me
forneceram as pistas para definir o universo de minha pesquisa de
Doutorado: quem procurar, a quem entrevistar, o que ler. Entrevistei 83
psicanalistas no eixo Rio-São Paulo e desses encontros, priorizo aqui
dois aspectos que chamei de: a produção da “verdadeira” psicanálise e a
formação analítica como uma prática de submissão.
A Institucionalização das Sociedades psicanalíticas
Nos
anos 60, no eixo Rio-São Paulo, são três os estabelecimentos de
formação psicanalítica ligados à Internacional Psychonalitical
Association (IPA), fundada por Freud e seus discípulos, em 1910: a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), a Sociedade
Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) e a Sociedade Brasileira de
Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ).
A SBPSP é a primeira a ser
reconhecida como Sociedade filiada à IPA, em 1951, no XVII Congresso
Psicanalítico Internacional, em Amsterdã. Desde 1937, funciona como
Grupo de Psicanálise de São Paulo, ligado à Dra. Adelheid Koch, membro
da Sociedade Psicanalítica de Berlim, que vem dar formação analítica em
São Paulo depois de insistentes solicitações feitas pelo Dr. Durval
Marcondes.
A SPRJ é reconhecida como Sociedade filiada à IPA, em
1955, no XIX Congresso Psicanalítico Internacional, em Genebra. Desde
1947, já existe, no Rio de Janeiro, fundado por um grupo de médicos, o
Instituto Brasileiro de Psicanálise; no ano seguinte, chega Mark Burke,
membro associado da Sociedade Britânica de Psicanálise, e inicia a
formação analítica nesta cidade. Em 1948, chega Werner Kemper, da
Sociedade Psicanalítica de Berlim, que divide a formação com Burke. Em
1949, retorna de Buenos Aires, já com sua formação analítica concluída
pela Associação Psicanalítica Argentina, o casal Perestrello; pouco
depois chegam outros analistas brasileiros também ali formados. Em 1951,
há uma crise no Instituto Brasileiro de Psicanálise: W. Kemper, com seu
grupo de analisandos, sai e funda o Centro de Estudos Psicanalíticos. É
este grupo que, em 1955, é aceito pela IPA como SPRJ.9
A
SBPRJ apenas é reconhecida como Sociedade ligada à IPA, em 1959, no XXI
Congresso Psicanalítico Internacional, em Copenhague. A SBPRJ é oriunda
do grupo de M. Burke que fica no Instituto Brasileiro de Psicanálise,
do grupo argentino que havia fundado, em 1951, a Sociedade de
Psicanálise do Rio de Janeiro e de outros analistas brasileiros chegados
ao Rio com formação analítica feita em Londres.10
Gradativamente,
as Sociedades latino-americanas vinculadas à IPA procuram se aproximar
e, em 1960, é fundado o COPAL (Comitê Coordenador das Organizações
Psicanalíticas da América Latina) no II Congresso Latino-Americano,
realizado em Santiago, no Chile.Desde 1956, realizam-se congressos
latino-americanos, a cada dois anos, das Sociedades Psicanalíticas
ligadas à IPA. Os principais objetivos do COPAL, são o de expandir a
psicanálise na América Latina, conseguir maior representação dessas
Sociedades perante os órgãos psicanalíticos internacionais, estabelecer
alguns padrões e regras comuns na formação analítica dos países
latino-americanos e apoiar os grupos latino-americanos que ainda não
tenham sido reconhecidos como Sociedades pela IPA.11Posteriormente o COPAL passa a ser conhecido como FEPAL.
A
Associação Brasileira de Psicanálise (ABP), entidade que tem por
objetivo congregar as Sociedades de Psicanálise do Brasil filiadas à
IPA, somente é fundada em 1967. Passa a se constituir em órgão
federativo dessas Sociedades, respeitando as suas autonomias. Também na
ABP como nas Sociedades do Rio e de São Paulo, os membros associados não
têm direito a voto.12
Pelo
período de fundação do COPAL e da ABP, percebe-se que o movimento
latino-americano – considere-se aqui, principalmente, o argentino – está
mais avançado que o brasileiro. Só quando as Sociedades “oficiais”
sentem-se mais fortes no Brasil, ou seja, quando se inicia o boom da
psicanálise e sua aceitação social – entenda-se classes média e média
alta – é que se dispõem a formar uma associação nacional. Entidade que,
por sua vez, irá favorecer mais a divulgação da psicanálise no Brasil.
Por
esta organização que, a meu ver, não é unicamente burocrática, mas de
controle e, em especial, de apoio corporativo, temos – no caso do Brasil
– no alto da pirâmide a IPA (o nível internacional); logo abaixo, o
COPAL (o nível latino-americano); depois a ABP (o nível nacional) e,
finalmente, as quatro Sociedades “oficiais” (São Paulo, Porto Alegre e
as duas do Rio de Janeiro), formando uma rede de apoio e controle
mútuos.
Destas, somente a de São Paulo (SBPSP), desde os seus
primeiros Estatutos, em 1949, abre a possibilidade de, além dos médicos,
também psicólogos e profissionais de outros cursos superiores se
inscreverem para formação analítica. No caso de outros cursos, fica a
critério da Comissão de Ensino a aceitação ou não do candidato.13
Apesar
de a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo ter esta postura e
as duas do Rio de Janeiro, ao contrário, só permitirem médicos em sua
formação, isso não irá significar maior abertura, menor rigidez.14 É
evidente que, no Rio de Janeiro, esta posição no anos 70, vai implicar
em uma aglutinação, em uma união maior dos psicólogos que desejam ter ostatus de
psicanalistas. Por isto, o movimento dos psicólogos no Rio de Janeiro,
no final da década de 60 e início da de 70, é bem mais corporativo e
apresenta características diferentes do de São Paulo.
A SBPRJ,
em seu primeiro Estatuto de 1959 – talvez por influência da de São
Paulo – coloca a questão da entrada de psicólogos e outros profissionais
na formação analítica de forma bastante ambígua. Não se define
claramente contra a entrada, subordinando-a “…à aprovação prévia de
uma legislação que permita o exercício terapêutico da psicanálise por
leigos no país”15.
Entretanto,
em 1971, quando se manifesta, no Rio de Janeiro, a pressão dos
psicólogos para ter acesso à formação analítica, são votados aditivos
aos Estatutos de 1959, que enunciam claramente, como os da SPRJ,16 que
“…todos os componentes da Sociedade, sejam membros Titulares,
Associados, Candidatos e Aspirantes deverão estar inscritos no Conselho
Regional de Medicina”.17 Desde
o ano anterior, no Regulamento para a Formação de Psicanalistas, isso é
requisito para aquele que deseja fazer formação, assim como é exigida
experiência psiquiátrica de pelo menos um ano.18 Ou seja, diante da pressão dos psicólogos, a SBPRJ acaba com a ambigüidade: é explícita em sua exclusão.
Pode
parecer estranho que a psicanálise, nas décadas de 40 e 50 – tanto no
Rio de Janeiro quanto em São Paulo -, denunciada por médicos psiquiatras
e neurologistas como prática charlatã, como poluidora do meio médico,19 ao
se organizar em Sociedades – com exceção da de São Paulo – exclua
qualquer outro profissional de sua formação que não seja médico. Porém, é
perfeitamente compreensível que, sobretudo no Rio de Janeiro, vários
estudos20 tenham
assinalado a adoção dos princípios da psicanálise pela comunidade
médica nos anos 20 e 30. Tais princípios inscrevem-se no campo da
medicina, embora em suas gêneses a psicanálise fosse apenas uma
modalidade terapêutica, acrescentada às formas já existentes.
No
entanto, não é a exclusão de outros profissionais que vai caracterizar o
fechamento destas Sociedades a tudo que possa ser criativo, novo ou
transformador. Este fato – muito explorado pelos psicólogos no Rio de
Janeiro, nos anos 70 – é irrelevante se pudermos compreender algumas
instituições21 que
são instrumentalizadas pela psicanálise, que equipamentos e
dispositivos são utilizados por ela e que práticas são aí
produzidas/fortalecidas.
A “verdadeira” psicanálise ou o Santuário de Vesta
A
instituição “verdadeira” psicanálise vai permear todos os itens
seguintes relativos às práticas analíticas. Entretanto, algo da produção
desta instituição será aqui mencionado, não só através dos Estatutos
das Sociedades, suas organizações internas e suas burocracias, mas,
principalmente, pelas práticas que ela dissemina. São interessantes os
escritos de alguns analistas ligados às Sociedades “oficiais” quando da
difusão da psicanálise entre os psicólogos cariocas, notadamente entre
os que vão se dedicar à chamada psicologia clínica. Leão Cabernite,22presidente
no início dos anos 70 da SPRJ, é um dos guardiães da “verdadeira”
psicanálise. Seus artigos sobre a “poluição” da psicanálise feita por um
bando de “invasores” – leia-se os psicólogos e a segunda geração de
psicanalistas argentinos – tornam-se os bastiões de uma prática
reacionária e até mesmo fascista.
Mas o que é a “verdadeira”
psicanálise? A produção de uma prática, de um território onde a
“verdade” está presente, onde os que não fazem parte de uma formação
específica – a realizada nas Sociedades “oficiais” – não podem a ela ter
acesso, nem dizer que a exercem.
Esta instituição produz fortes
subjetividades, pois não são apenas os psicanalistas mais conservadores
que disseminam esse tipo de pensar a prática psicanalítica. Ela está
presente nos analistas considerados “progressistas”, com a tutela que
exercem sobre o movimento dos psicólogos no Rio de Janeiro e a postura
que, em São Paulo, tomam com relação aos acontecimentos de 1968 na USP,
por exemplo.23 Pior,
ela está presente nos próprios psicólogos tanto cariocas quanto
paulistas que, para exercerem a prática clínica, têm que se submeter à
formação analítica nas Sociedades ligadas à IPA. Ela está presente e
difundida como crença nas classes média e média alta, que são os
clientes e consumidores dessa psicanálise.
Num contexto político
de feroz ditadura onde grassa a censura, o terror nos mais variados
espaços, o medo e o “desbunde”, em que os projetos de ascensão social
tornam-se prioritários, no qual o intimismo predomina em detrimento do
público e o familiarismo é a tônica, esta forma de pensar uma prática
clínica é hegemônica. Uma clínica que nada tem a ver com o mundo, mas
com uma assepsia fastigiosa, com uma total desvinculação de qualquer
tipo de implicação, de transversalidade.
É o falso objeto natural de que no fala Veyne24 como
algo não produzido historicamente: a prática psicanalítica é este
objeto que é assim, sempre foi e será, como um dado em si, que tem
existência própria e que é, portanto natural. Para os psicanalistas
“oficiais”, a IPA representada pelos herdeiros diretos do Grande Pai –
aqueles que detêm os conhecimentos por ele ensinados – é o Olimpo de
onde advêm todas essas “verdades”. Este religioso respeito e submissão
que todas as Sociedades “oficiais” demonstram em relação à grande
instância, personificada pela IPA, é a forma de garantir sua vinculação a
ela, o que lhes permite usufruir prestígios e privilégios políticos e
sociais. Para a sociedade em geral, somente elas – como efeito da
produção de suas próprias práticas – são as detentoras da “verdadeira”
psicanálise.
Como templos sagrados, estas Sociedades devem se
resguardar das misturas, impurezas e poluições que estão ao seu redor,
que circulam pelo mundo. Como vestais, sacerdotisas e guardiães do
Santuário de Vesta (a deusa da Vida entre os romanos) – inacessível aos
leigos -, devem manter sua virgindade, enquanto estiverem a serviço do
culto.25 Assim,
os psicanalistas “oficiais” resguardam a pureza da “verdadeira”
psicanálise e, por isso, poucos são os privilegiados que têm acesso a
esses templos sagrados, poucos os que podem funcionar como vestais;
antes, devem ser “purificados”, evitando toda e qualquer mistura.
Não
são apenas os analistas mais “conservadores” os que defendem esses
lugares santos; estes, sem dúvida, são os que mais alardeiam com seus
discursos/práticas tal religiosidade. Entretanto, muitos considerados
“progressistas”, que, em suas falas até podem questionar esses templos
sagrados, em suas práticas só fazem reafirmá-los e reforçá-los. Os
jovens psicólogos querem – e muito – ser “iniciados” em tais “mistérios”
inacessíveis aos simples mortais e, para isso, de início aceitam e até
pedem a tutela dos que já estão dentro desses santuários e os podem
“iniciar”. Posteriormente, organizam seus próprios templos – é verdade
que em cima de uma série de críticas a todas essas mitificações -,
terminando por criar outras religiosidades, outras “verdades”, outros
eleitos, outros “iniciados”, outros sacerdotes.
Assim, na
primeira metade da década de 1970, a hegemonia está com a instituição
“verdadeira” psicanálise que reifica e naturaliza uma determinada
prática clínica. Através dela, facilita e fortalece a produção de certas
subjetividades que se entranham profundamente em todos os poros das
camadas médias urbanas brasileiras.
Para a “verdadeira”
psicanálise, a formação deve merecer todos os cuidados, deve ser
“especial”, pois a iniciação em seus “mistérios” é coisa delicada e pode
se tornar perigosa se não houver uma “preparação” adequada. É
necessário exercer um bom controle sobre aqueles que um dia irão
representá-la, sobre aqueles que no futuro serão seus guardiães.
Por
isso, para os analistas em geral, a psicanálise não pode ser uma
formação dada em Universidades, pois necessita de todo um processo e
formação próprios, diferentes dos utilizados academicamente. Suas
supervisões clínicas, cursos, análises didáticas, enfim, a formação
psicanalítica deve ser função exclusiva das Sociedades e não de qualquer
analista individualmente, afirmam sem exceção todos os psicanalistas
ligados às Sociedades conhecidas como “oficiais”.
A Instituição formação analítica ou a pedagogia da submissão
Outra
instituição que é instrumentalizada pelas Sociedades “oficiais” é a da
formação. Naturalizam-se o domínio dos didatas, seu poder e os ritos de
iniciação, que cada vez se tornam mais complexos. O didata, com mais
prestígio que qualquer médico, padre ou professor, possui um enorme
controle na avaliação do aluno; suas informações são fundamentais para
que se possa saber do “real aproveitamento” dos candidatos a analistas. E
com uma agravante: são os responsáveis pela análise pessoal desses
candidatos e devem informar sobre os seus “progressos” nas sessões
analíticas. São os representantes plenipotenciários dessa formação com
um sumo poder, uma suma razão e uma suma verdade. Esta relação produz e
fortalece por um lado a onipotência, a força, a dominação dos analistas,
por outro, a impotência, a fraqueza e a submissão dos candidatos.
De
um modo geral, os didatas se comportam como se este lugar fosse
vitalício e como se tivessem adquirido, por herança, as suas
atribuições. Embora os Estatutos dessas Sociedades prevejam a
possibilidade de afastamento de tal função, não se tem notícia de nenhum
caso em que isto tenha ocorrido.
xxxxxOs
didatas são considerados os “mais dotados”, os “melhores”, etc. e,
portanto, constituem um ideal a ser atingido por todo psicanalista
dentro da sociedade (…) e os mecanismos institucionais passam a ser
manipulados por esses detentores como um grupo especializado de
conhecimento…26
Assim,
a análise didática é considerada o aspecto mais importante na formação
de um analista. Este fato, muito enfatizado nos anos 70, corresponde ao
que chamamos de psicologização da vida cotidiana: a produção de
subjetividades voltadas para o privado, para o interior do sujeito, para
o seu autoconhecimento. Por sua vez, tal afirmação alimenta em muito o
poder dos didatas e, do ponto de vista do “discurso da competência”,27 empobrece
a formação. Segundo informações obtidas por Sagawa em São Paulo “…a
formação psicanalítica no Instituto de Psicanálise restringiu-se a
Freud, Klein e Bion a partir de 1970.28 No
Rio de Janeiro, o “kleinianismo” domina nas duas Sociedades. São
centros de formação que importam continuamente uma psicanálise
estrangeira e os psicanalistas locais são meramente reprodutores dessa
psicanálise importada (sobretudo da Inglaterra). Não há, portanto, uma
produção que se possa chamar de original; estuda-se e aplica-se a teoria
e a técnica dos “mestres” estrangeiros de forma mecânica e acrítica.
Isto
é facilmente corrobado não só pela formação analítica – dentro do que a
própria psicanálise considera como um profissional “competente” -, como
pelo poder dos didatas. Seu número é tão reduzido para atender à
crescente demanda de candidatos à formação, que seu trabalho se resume
ao mero atendimento a esses “aspirantes” a psicanalistas, através das
análises didáticas e supervisões de casos. Poucos didatas têm uma
clientela fora deste universo e a pouca produção teórica realizada na
época limita-se à reprodução de uma psicanálise estrangeira.
Os
preços cobrados por esses especialistas repercutem na sociedade em geral
como uma valorização desse trabalho, o que vai torná-lo extremamente
lucrativo pela pouca concorrência. Tal fato determina o pequeno número
de didatas e de psicanalistas formados dentro da ótica da “verdadeira”
psicanálise. Esse saber vem satisfazer e fomentar as demandas então
produzidas e, por ser ainda reduzido o número de profissionais, seus
serviços são oferecidos dentro de altos padrões financeiros. O status de
psicanalista é atraente e ambicionado pelos jovens profissionais “psi”.
Esse elitismo em muito atrai a classe média dos anos 1970 no Brasil com
seus projetos de ascensão social. Esta sim poderia pagar altos preços
exigidos pelas Sociedades “oficiais” para a formação psicanalítica.
Tal
situação é naturalizada em cima da produção oficial da época sobre a
questão do público e do privado. A subjetividade que vai sendo
construída é a de que os estabelecimentos privados são aqueles que
melhor atendem, em todos os setores – devem cobrar alto pelos seus
serviços, visto que os oferecidos pela rede pública são de péssima
qualidade. Vai se produzindo, em grande parcela da produção,
principalmente na classe média, o apoio à privatização, que chegaria a
seu auge nos anos 90 e início do século XXI. Por isso, não causa
surpresa alguns entrevistados, pertencentes às Sociedades “oficiais”,
afirmarem categoricamente que a discussão sobre os altos preços –
cobrados pela formação analítica e pelos próprios psicanalistas em seus
consultórios – é uma demagogia, visto as Sociedades serem
estabelecimentos privados e terem, desta forma, o direito de cobrar
alto.
Esse número restrito de didatas, reconhecido por muitos
psicanalistas, é também uma forma de “…sustentar o controle interno no
que se refere à possibilidade de ocorrer ou não uma fissão (na
Sociedade)”.29 Quaisquer
movimentos que ocorrem dentro dessas Sociedades são psicologizados,
visto como conflitos pessoais, movimento passional, falta de análise ou
mesmo a comprovação de uma análise mal feita.30 Em
outros casos, são considerados como desavenças de ordem teórica,
traição ao espírito da psicanálise, tentativa de denegri-la ou heresia.
Estes
últimos rótulos são utilizados para os grupos que fazem oposição
interna dentro das Sociedades “oficiais”, e também para os psicólogos –
especialmente os do Rio de Janeiro – que, por não terem formação nessas
Sociedades, não podem se dizer psicanalistas. Ao se denominarem assim,
traem o espírito da psicanálise, denegrindo-a. As lutas internas pelo
poder dentro das Sociedades “oficiais” e mesmo as características
autoritárias que marcam a formação analítica são vistas por muitos como
diferenças de ordem teórica. Em São Paulo, o “bionianismo”, dominante
nos anos 70 na SBPSP, principalmente em sua cúpula dirigente, é
considerado como responsável pela rigidez, pelo autoritarismo que
caracteriza esta Sociedade.31 Da
mesma forma, vários psicanalistas, no Rio de Janeiro, afirmam que o
“kleinianismo”, dominante na década de 70 nas Sociedades “oficiais”
nesta cidade, é o responsável, de um lado, pela “leitura esquemática e
pobre da realidade social e psíquica” – “privilegiando a realidade
interna em detrimento da externa” – e, por outro, pela postura rígida
dos psicanalistas dominantes à época.
O que está embutido nessas
situações não são somente posturas teóricas diferentes. São, também
posturas que correspondem às práticas e às subjetividades dominantes no
período em que a rigidez, o distanciamento e a neutralidade são
sinônimos de cientificidade e objetividade, onde a psicologização, o
mundo interno e o domínio do privado, são enfatizados e fortalecidos.
São crenças também presentes nos próprios dispositivos de formação
analítica e coerentes com todo o funcionamento dos estabelecimentos que
necessitam de um Mestre, um Pai, uma Burocracia: em suma, de um modelo
qualquer para excomungar as diferenças, as diversidades.
Estas
práticas, ao apontarem os “desvios”, as “formas degradadas”, garantem a
justeza de suas linhas. “O Supremo Tribunal do Inconsciente distribui
absolvições e condenações”.32 A
questão do poder é sempre escamoteada, sempre afastada em nome da União
Societária fortemente instituída. O que vigoram são os deveres
disciplinares estabelecidos nos estatutos, sentimentos que devem ser
comuns e de solidariedade doutrinal.
Mais do que isso, os fatos
apontados produzem a infantilização, a desqualificação do analisando.
Este é tratado e percebido como um bebê, pois sua vida mental está nas
mãos do analista que o ajudará – como um Pai, um Mestre, um Modelo – a
caminhar e a “crescer”.33 Por
isso, em todas as três Sociedades ligadas à IPA, os membros associados
(o psicanalista já formado) estatutariamente até os anos 80 não têm o
direito de participar nas Assembléias Gerais e muito menos votar. A
“criança”, que é o analisando, não pode, assim, dispor de sua
criatividade, originalidade. A liberdade, a criação, a crítica, enfim, a
singularidade está terminantemente proibida nestes espaços. A
obediência e a servidão são as normas vigentes. A instituição-formação,
desta maneira, produz, naturaliza e tenta eternizar as relações tipo
senhor-escravo, dominador-dominado, exlorador-explorado. O candidato
submetido, dominado e explorado faz da sua capitulação o preço que paga
para se tornar um dia senhor, dominador e explorador. A submissão e a
insignificância de hoje serão o poder e a onipotência de amanhã.
A
psicanálise, ensinada como uma teoria abstrata, praticada por
especialistas abstratos – “…o psicanalista não é médico ou não-médico,
é psicanalista”34 -,
produz um espaço protegido, asséptico, onde a realidade cotidiana não
deve entrar, onde a neutralidade impera. Predominam o intimismo, o
privado, o “destino das pulsões” e os mecanismos e processos
intra-psíquicos. Há uma produção ativa de invalidação do sócio-político,35 o
que, em realidade, faz com que a psicanálise e sua formação se tornem
cúmplices do sistema sócio-econômico em que se inscrevem.
A
formação analítica e as práticas daí decorrentes têm efeitos sociais
poderosíssimos, pois naturalizam um grupo particular de especialistas
que têm o monopólio da “escuta” e são vistos, pela sociedade em geral,
como figuras poderosas, respeitadas e idealizadas, transformando-se em
modelos de referência. Naturalizam uma postura “asséptica”, “neutra” e,
portanto, considerada “objetiva” e “científica”. Fortalecem as
subjetividades hegemônicas produzidas nesses anos, ao afirmarem a
necessidade do crescimento pessoal, do voltar-se para dentro de si
mesmo, de sua família, ao enfatizarem a importância e a construção de um
clima carregado de afeto.
Há, na sociedade em geral, a produção
de demandas que necessitam do “apoio” e do recurso psicanalítico: as
relações familiares, os ideais de feminilidade e masculinidade”,36 a exploração das potencialidades emocionais, a “orientação” para os processos decisórios pessoais, etc.37Estas
demandas são produzidas e fortalecidas, principalmente, entre os
profissionais liberais (psicólogos, professores, artistas, intelectuais,
etc) e estudantes universitários que desejam se autoconhecer.
xxxxx….“melhorar”
a “qualidade” de seus vínculos eróticos, afetivos e familiares,
“ampliar” sua criatividade, iniciativa ou eficiência profissionais
(…). Há, enfim, uma “ampliação” da demanda (…) a queixa tornando-se
cada vez mais inespecífica38 (as aspas são minha responsabilidade).
Ou
não seria, além de ampliação da demanda, uma naturalização desta
demanda? Naturalização no sentido de que ela não é percebida como
produção dessas próprias práticas “psi”, mas como um objeto já dado e,
portanto, natural.
Duas reações ocorrem neste período entre os
próprios psicanalistas “oficiais”. De um lado, os mais “progressistas”
acreditam que se está iniciando um processo de “democratização” da
psicanálise, visto que seu consumo torna-se cada vez maior. Por outro,
as reações são de medo e perplexidade, uma vez que a psicanálise está se
transformando numa “mercadoria de consumo”. No Rio de Janeiro, quando
se iniciam as pressões dos psicólogos para terem acesso à formação
analítica, esses psicanalistas defendem suas práticas atacando tais
movimentos e procurando “resguardar” a psicanálise de ser conspurcada.
Entretanto, alguns entrevistados – tanto no Rio quanto em São Paulo –
admitem que foi esse o período em que mais prosperaram financeiramente.
As filas em seus consultórios são cada vez mais numerosas e a
psicoterapia de grupo passa a ser utilizada como forma de dar vazão à
demanda então recrudescida ou para atender a alguns segmentos de classe
média que não podem pagar os altos preços de uma análise individual.
Uma das poucas vozes críticas e que, na época, mostra tal produção é Katz que, em uma de suas obras,39 coloca
em análise a utilização das práticas psicanalíticas e o poder das
Sociedades “oficiais” que se julgam donas da formação analítica, detendo
o monopólio da psicanálise.
Finalizando…
O
que pretendi apontar até aqui é que as práticas dominantes nas
Sociedades “oficiais”, nos anos 60 e 70, em nosso país, com seus
dispositivos e instituições, favorecem em muito as subjetividades
hegemônicas produzidas à época e a psicanálise só tem passagem, só se
torna um boom, porque há esses processos de subjetivação
típicos do capitalismo monopolista. No caso do Brasil, trata-se de uma
ditadura militar – o que agrava mais ainda a situação – e, ao lado de
tais produções, há outras: uma forte repressão, uma violência extremada,
uma ferrenha censura e um enorme poderio da mídia no sentido de impedir
toda e qualquer resistência, toda e qualquer construção singular, todo e
qualquer agenciamento. É nesse contexto de terror nos diferentes
micro-espaços, de medo, imobilismo e apatia de quase todos os setores da
sociedade que as práticas psicanalíticas se expandem e ganham
características bem mais autoritárias. Um exemplo é a realização, em
1970, do VIII Congresso Psicanalítico Latino-americano, em Porto Alegre.
O tema original “Violência e Agressão”, foi alterado, por decisão da
maioria das sociedades participantes, para “Correntes Atuais do
Pensamento Psicanalítico”, com o voto contra da Associação Psicanalítica
Argentina. Relata um representante da APA:
xxxxx“as
cúpulas das Associações brasileiras, de cuja iniciativa partira a
mudança do tema, tinham cargos oficiais que poderiam perder, e seu medo
expressava seu grau de compromisso, com o regime de terror policial do
país”.40
A
primeira metade dos 70 – que, como já mostrei, é o período de hegemonia
da psicanálise e da formação vinculadas à IPA – é representada, no
Brasil, pelos anos mais terríveis de perseguições, torturas, seqüestros,
assassinatos, desaparecimentos dos que se opunham aos modelos então
vigentes, como os de família, o sexual, o de estudante, o de jovem, etc.
Tanto que os chamados militantes como os hippies são, nesses primeiros
anos dos 70, aniquilados e/ou cooptados.
O terrorismo de Estado
está presente – não como simples reprodução de um poder maior, mas a
partir de uma série de práticas sociais – no cotidiano, não só desses
grupos de jovens, mas também nas populações periféricas das grandes
cidades e na sociedade em geral.
Sobre esta questão é importante a visão que Foucault41 nos
traz, não somente sobre as práticas sociais, mas, em especial, sobre o
que chama de microfísica do poder, que seriam os processo de
constituição de práticas, discursos e modos de subjetivação. Para ele, o
nível do Estado e o das práticas não podem ser “…confrontados como
realidades pré-existentes e sim articulados, pois é ao nível do próprio
corpo social que o poder toma corpo”.42
No
Brasil desse período, vigoram diferentes práticas sociais como a do
extermínio (não só dos opositores aos modelos vigentes, mas de segmentos
empobrecidos da população), o que gera um enorme medo e progressiva
apatia; as práticas eufóricas ligadas aos projetos de ascensão social
(principalmente nas classes médias urbanas), que geram “ufanismo” e
intimismo; as da mídia (justificando e valorizando tanto o extermínio
quanto a ascensão social). Todas elas produzem e/ou fortalecem
determinados modos de subjetivação, todas elas mostram como os
micropoderes se exercem em diferentes partes do corpo social.
As
práticas decorrentes da psicanálise, aliadas a todas as demais nesse
período, geram também uma série de efeitos que, em realidade, vão
constituindo um “determinado” sujeito típico das camadas médias urbanas.
Muitos autores apresentam a difusão dessas práticas “psi” sem, no
entanto, apontar para a produção deste “outro” sujeito que está sendo
construído no cotidiano de tais práticas.
Este sujeito vai sendo
criado e estimulado à medida que a psicanálise nos grandes centros
urbanos brasileiros invade a mídia – a grande imprensa, as revistas
femininas,43 a TV – produzindo a chamada cultura psicanalítica,44sob cuja ótica a vida cotidiana das classes média e média alta passa a ser tematizada e vivida.
xxxxxCresce
a publicação de livros acessíveis ao “leigos”, de revistas
especializadas, de revistas femininas com seções de aconselhamento
psicológico assinadas por psicanalistas e psicólogos (…). Mais
recentemente dois diários cariocas publicam colunas assinadas por
psicanalistas que respondem às cartas dos leitores. Também a televisão
oferece espaço para uma pedagogia de inspiração psicanalítica em
programas femininos e debates variados, isso sem mencionar as novelas e
programas humorísticos. “Mas isto não é psicanálise!”, diriam alguns
puristas. Talvez possamos retrucar: “Isto também é psicanálise.45(grifo go autor)
Diferentes
setores da vida social brasileira sofrem esses efeitos: são
cotidianamente psicologizados. Toda e qualquer crise é vivida como
necessidade terapêutica, pois os especialistas “psi” estão aí para
aconselhar, esclarecer, instruir e acalmar pais, mães, maridos, mulheres46e para propor modelos – condizentes com os dominantes – de criança, adolescente, família, casamento, esposa etc,47 produzidos/fortalecidos
por suas próprias práticas. Absorve-se o “modo” psicanalítico de
compreender os mais variados fenômenos do cotidiano, através da
utilização crescente de palavras, expressões e concepções próprias da
psicanálise, onde tudo passa a ser explicado a partir de esquemas
interpretativos já dados.
Mesmo os psicanalistas “progressistas”
encontram-se marcados por tais modos de se perceber – enquanto
profissionais -, e de perceber o mundo “psi” e o mundo no qual se
inserem. Basta ver seus discursos/práticas no instante em que pretendem
explicitar um projeto político em nome da psicanálise.48 Exemplos
disso temos quando, no início dos anos 80, nas três Sociedades
“oficiais”, instalam-se crises que mostram o momento histórico que o
Brasil atravessa: revigoramento dos movimentos populares e sociais,
processo de “abertura”, embora lento, gradual e seguro.
O movimento dos psicólogos – mais no Rio de Janeiro do que em São Paulo – em sua luta pelo status de
psicanalista, apesar de todas as críticas que fazem às Sociedades
“oficiais” e a sua formação, ao organizarem seus estabelecimentos,
reproduzem quase integralmente as instituições formação analítica
(nascida da IPA) e a “verdadeira” psicanálise. Também eles estão
marcados pelas visões intimistas de psicanalista e de mundo geradas
pelas práticas “psi” e pelas subjetividades hegemônicas da época.
A
“verdadeira” psicanálise, de início através da criação da IPA e dos
diferentes Institutos de Formação, tem a pretensão de ser a “pura”
psicanálise, e estes dispositivos são alguns dos principais fatores para
que se possa assegurar esta “pureza”, pelos cuidados no sentido de
evitar poluições, misturas. Se tais equipamentos são criados para cuidar
da transmissão, instituem, por isso, uma determinada escuta.
Essa
escuta “verdadeira” e um certo discurso psicanalítico são
pedagogicamente ensinados, transmitidos nas Sociedades “oficiais” como
os únicos que, realmente, representam a psicanálise; ganham foro de
verdade única, absoluta e inquestionável. Isto não é privilégio da
formação ligada à IPA. As diferentes filiações vão determinar diferentes
tipos de escuta e discursos. Cada estabelecimento criado vai
instrumentalizar a instituição da formação de modo que fique encarcerada
num determinado território onde estão presentes o dogmatismo, a escuta
“verdadeira”, a ortodoxia, a estrita observância a determinadas regras
do pensar/fazer, o impedimento da criação, a permanência da “mesmice”.
Em suma, mesmo aqueles que criticam a formação “oficial” vão, em muitos
momentos, cair no dogma, na ortodoxia, no enclausuramento.
Pensar
tais questões, trazer um pouco a história de uma certa psicanálise
oficial considerada única, talvez possa nos alertar para as práticas que
hoje estamos construindo em nosso cotidiano enquanto profissionais
“psi”. Que subjetividades estamos naturalizando? Que modos de viver e de
existir nossas práticas têm fundamentado? E, como em nome da ciência
objetiva e neutra, temos nos afastado da Vida. Talvez ressaltar um pouco
os pequenos detalhes ditos inúteis, possa nos fortalecer, como nos
ensina o poeta Manoel de Barros.
“O rio que fazia
uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia
uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de
uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa. Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem”
____________________
1 Deleuze, G. Foucault. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1988, 125.
2 Sobre o assunto, ver: Donzelot, J. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
3 Coimbra, C.M.B. Guardiães da Ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995.
4 Sobre o assunto, ver Bicudo, V.I. “Memória e Fatos”. In: Revista Idi. São Paulo, 1990.
5 Desde
os anos 20 e 30, os higienistas no Brasil vão privilegiar propostas de
intervenção junto às crianças e, paralelamente, aos seus responsáveis.
Sobre o assunto, ver: Costa, J.F. “Ordem Médica e Norma Familiar”. Rio de Janeiro: Graal, 1979 e, Nunes, S.A. “Da Medicina Social à Psicanálise”. In: Birman, J. (Org.) “Percursos na História da Psicanálise”. Rio de Janeiro: Tauros, 1988, 61-122.
6 Dorzelot, J. Op.Cit., 177-178.
7 Sagawa, R.Y. “Os Inconscientes no Divã da História”. Dissertação de Mestrado – UNICAMP, 1989, 2 vols.
8 Figueiredo, A.C.C. “Estratégias de Difusão do Movimento Psicanalítico no Rio de Janeiro” – 1978/1983. Dissertação de Mestrado – PUC/RJ, 1984.
9 Sobre o assunto, ver Perestrello, M. História da Sociedade Brasileira de Psicanálise: suas Origens e Fundação. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
10 Idem.
11 Sobre o assunto, ver: Rascovsky, A. e Grinberg, L. Passado e Futuro da COPAL. In Revista Brasileira de Psicanálise – vol VI, nº 3 e 4, 1972, 369-376.
12 Sobre o assunto ver: Estatutos da Associação Brasileira de Psicanálise, 1967, mimeogr.
13 Sobre o assunto, ver: Sagawa, R.Y. Op Cit. 2º vol. e Bicudo, V.I.“Memória e Fatos”. In: Op. Cit., p.96.
14 A
admissão de leigos na formação analítica em São Paulo vem desde o
início do Grupo Psicanalítico de São Paulo formado em torno de Durval
Marcondes e Adelheid Koch. Sobre isto, ver: Sagawa, R. Y., Op Cit., 1º
vol.
15 Estatutos da SBRJ. 1959, mimeogr., p.11.
16 A SPRJ, por seus estatutos, aceita para formação estudantes de Medicina a partir do 3º ano.
17 Estatutos da SBPRJ. Op. Cit., p.37.
18 “Regulamento para a formação de Psicanalistas”. 1970. In: Estatutos do SBPRJ. Op. Cit., p.42 e 47.
19 Sobre
isso, ver os episódios de agressão sofridos por Adelheid Koch em São
Paulo e a prisão no Rio de Janeiro de Werner Kemper. In: Sagawa, R.Y.
Op. Cit., 2º vol. E Perestrello, M. “História da SBPRJ, Suas Origens e Fundação”. Op. Cit.
20 Sobre o assunto ver os trabalhos de Nunes, S. A. “Da Medicina Social à Psicanálise”. Op. Cit. e Birman, J. “Retornando à História”. In: Birman, J. Op. Cit., p.07-12.
21 O
conceito de instituição, para análise institucional, difere do de
organização ou estabelecimento. Instituição é onde as relações de
produção ou quaisquer outras estão instituídas de forma aparentemente
natural e eterna.
22 Analista
didata e presidente da SPRJ, no início dos anos 70, foi analista didata
de Almicar Lobo. Este médico se notabilizou por participar de sessões
de tortura a presos políticos durante o período da ditadura militar no
Brasil, atuando em um dos centros da repressão no Rio de Janeiro: o
DOI-CODI, no período de 1969 a 1974. Por esta participação foi cassado
como médico, em 1989, pelo Conselho Federal de Medicina.
23 Sobre o assunto consultar Botelho, E.Z.F. Os Fios da História: reconstrução da história da psicologia clínica na Universidade de São Paulo. Tese de Doutorado, USP, 1989.
24 Veyne, P. M. Como se Escreve a História. Brasília: Cadernos da Universidade de Brasília, 1982.
25 Prática
religiosa entre os romanos antigos. No apogeu do chamado “mundo
romano”, as antigas práticas religiosas, antes realizadas pelas
famílias, tornam-se públicas e formais e passam a ser controladas pelo
Estado, que organiza um corpo hierarquizado de sacerdotes. In: Block, R.
e Cousin, J. Roma e seu Destin– Coleção Rumos do Mundo. Lisboa: Cosmos, 1964.
26 Sagawa, R. Y. Op. Cit., 2º vol., p.251.
27 Sobre o assunto consultar Chauí, M. Cultura e Democracia: as falas competente. São Paulo: Cortez, 1989.
28 Sagawa, R. Y. Op. Cit., 2º vol., p.203.
29 Sagawa, R. Y. Op. Cit., p.250. Sagawa refere-se a isto quando fala que, para se formar um Study Group reconhecido pela IPA, é necessário que haja pelo menos um didata. Um Study Group é o primeiro reconhecimento feito pela IPA que dará, posteriormente, origem a uma Sociedade Psicanalítica.
30 Argumento muito utilizado por alguns dos psicanalistas “oficiais” entrevistados quando se referiam ao Caso Amílcar Lobo.
31 Sobre isso, ver alguns depoimentos coletados por Sagawa, R. Y. Op. Cit., 2º vol.
32 Castel, R. O Psicanalismo. Rio de Janeiro: Graal: 1978, p.17.
33 Tal comparação foi feita por muitos entrevistados ligados às Sociedades “oficiais”.
34 Cabernite, E. Regulamentação da Profissão de Psicanalista. In: Revista Brasileira de Psicanálise, vol. VI, nº 1 e 2, 1972, p.33.
35 Sobre o assunto, ver o texto de Santos, T.C. “Representações do Masculino nas Revistas Femininas”. In: Birman, J. (Org.), Op. Cit., p.253-263.
36 Castel, R. Op. Cit.
37 Figueiredo, A.C.C. Op. Cit., p.12 e 13.
38 Idem, p.13.
39 Katz, C. S. Psicanálise e Instituição. Rio de Janeiro: Documentário, 1977.
40 Braslavsky, M.B. e Bertoldo, C. “Anotações
para uma História Atual do Movimento Psicanalítico Argentino:
Interpretação Crítica da Ideologia e da Ação Política de Um Setor de
Pequena Burguesia”. In; Langer, M. (Org.). Questionamos 2. Belo
Horizonte: Interlivros. 1977, 25-48, p.33. Sobre esse assunto, ver
também: Castel, R. Op. Cit., pp. 14 e 44.
41 Foucault, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
42 Rodrigues, H.B.C. As Novas Análises. Projeto de Dissertação de Mestrado – UFRJ, Instituto de Medicina Social, 1991, p.32.
43 Sobre o assunto, ver o artigo de Santos, T. C. A Mulher Liberada e a Difusão da Psicanálise. In: Figueira, S. A. (Org.). O Efeito Psi. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
44 Sobre o assunto, ver Figueira, S. A. (Org.). Cultura da Psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1985.
45 Figueiredo, A.C.C. Op. Cit., pp.14 e 15.
46 Russo,
J. “A Difusão da Psicanálise nos anos 70: Indicações Para Uma Análise”.
In: Ribeiro, I. (Org.). Sociedade Contemporânea Brasileira: Família e
Valores. São Paulo: Loyola, 1987, 189-205.
47 Sobre a questão do casamento, ver Russo, J. e Santos, T.C. Psicanálise e Casamento. In: Velho, G. e Figueira, S.A. (Org.). Família, Psicologia e Sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, 277-305.
48 Castel, R. Op. Cit., pp.20 e 21.