Colóquios > Colóquio Internacional Arquivos de Psicanálise > Itens > Textos > A Difusão da psicanálise no Brasil na primeira metade do Século XX
Jane A. Russo
A psicanálise e sua popularização
Apesar de toda a mitologia em torno das “resistências” à psicanálise, ela se propaga pelos países do chamado mundo ocidental desenvolvido (Europa e América do Norte) com uma velocidade impressionante. A Interpretação dos Sonhos, marco da fundação da nova doutrina, é publicado em dezembro de 1899, com a data de 1900, e já em 1907 é fundada a Associação Vienense de Psicanálise e a Sociedade Freud em Zurique. Nos seis anos seguintes são fundadas as sociedades psicanalíticas de Berlim, Budapeste, Londres, Nova Iorque, além da Sociedade Norte-Americana em Boston e da Associação Psicanalítica Internacional (conhecida por sua sigla em inglês — IPA). Em 17 é criada a Sociedade Holandesa, em 19 a sociedade Suíça, em 22 a Associação Psicanalítica Russa (dissolvida em 28) e a Sociedade Indiana. Em 23 são publicadas as obras completas de Freud em Espanhol, em 25 é criada a sociedade Psicanalítica Italiana e em 26 a Sociedade Psicanalítica de Paris. Sua difusão entre artistas e intelectuais nos anos 20 e 30 é conhecida, sobretudo a que se deu através do movimento surrealista. Além dessa difusão mais elitizada, ecos de uma popularidade menos nobre nos chegam através das palavras de Gregory Zilborg, psicanalista americano, que escreve em 1939: “Em certas ruas de Holywood, anúncios em néon vermelho proclamam os méritos da psicanálise junto com os das loções capilares e dos laxantes antiinflamatórios!”1
Em um artigo de 1925, dois dos pioneiros da psicanálise francesa — Hesnard e Laforgue — afirmam que, a partir do início da década de 20, “aparecem nos jornais, na revistas, nos romances da moda, nas conferências mundanas, mil alusões à doutrina psicanalítica” (p. 25). Segundo eles é na crítica literária e no romance que a doutrina psicanalítica conhece sua primeira difusão. Em outro texto de 1929, Hesnard e Pichon relatam a chegada a Paris de Eugenie Sokolnicka, psicanalista enviada por Freud, que, vinculando-se ao meio literário parisiense, dava recepções às quais comparecia o grupo de escritores da Nouvelle Revue Française. Segundo os autores:
xxxxxDestas recepções algo cenaculares, naturalmente transpiravam ecos na Sociedade Parisiense. Logo não havia mais um salão, mais uma reunião de jovens intelectuais, um café onde não se falasse da psicanálise, que havia se tornado o assunto da moda, como alguns meses antes havia ocorrido com a teoria da relatividade de Einstein. (Hesnard e Pichon, 1929, p. 111)2
Afirmam que essa difusão mundana da psicanálise foi curta, mas, aparentemente bastante produtiva:
xxxxx(…) de outro lado é inegável que esta difusão literária e mundana criou na França um público para os trabalhos psicanalíticos: público excessivamente vasto no início, cujos elementos frívolos pouco a pouco se auto-eliminaram, e que, reduzido a seus elementos mais cultivados e mais sérios, é muito útil ao movimento psicanalítico de nossa época. (Hesnard e Pichon, 1929, p. 111)3
É interessante comparar o caso francês, em que a difusão mundana precede a efetiva institucionalização (e até mesmo a facilita), com o que ocorreu na Argentina. Em seu estudo sobre o surgimento da psicanálise argentina, Mariano Ben Plotkin (1997) afirma que nos anos 30, quando o impacto das idéias freudianas no discurso e na prática psiquiátricos já era razoável — embora não houvesse qualquer institucionalização da psicanálise enquanto ocupação —, a psicanálise aparecia como assunto de interesse no plano da cultura popular. Nos anos 20 e 30, o interesse popular pela ciência e tecnologia, por um lado, e pela parapsicologia, curas e milagres, por outro, era intenso. Outro tema de grande apelo popular que surge neste momento, e que tem pontos de contato com a psicanálise, é a sexologia. Durante os anos 30 editores populares começaram a publicar livros de psicanálise em edições baratas que rapidamente se esgotavam. Em meados dos anos 30 a psicanálise já estaria integrada na cultura popular.4
O processo descrito por Plotkin é bastante semelhante ao ocorrido no Brasil. De um lado, a acolhida favorável no campo psiquiátrico, sem que houvesse qualquer interesse em afirmar a especificidade da nova teoria, ao contrário, a tendência sendo acoplá-la aos antigos pressupostos organicistas vinculados à teoria da degenerescência. De outro, a concomitante difusão mundana e leiga, anterior a qualquer processo de institucionalização. É este processo que vamos examinar mais detidamente no restante do artigo.
Psicanálise e psiquiatria: uma curiosa junção
O surgimento oficial da psicanálise no Brasil é razoavelmente tardio. Somente nos anos 40 (em São Paulo) e nos anos 50 no (Rio de Janeiro) são fundadas sociedades de formação oficialmente vinculadas à IPA.5 Antes disso, porém, ela já circulava no meio acadêmico e intelectual dessas duas cidades e, o que é mais interessante, já circulava também com alguma desinvoltura no meio não-acadêmico, entre a classe média letrada da época (em revistas femininas, rádio, livros de divulgação científica) de tal modo que, quando finalmente ocorre a institucionalização, certamente já havia um publico consumidor formado, pronto para demandar e se submeter à nova terapia.
É possível falar de uma difusão da psicanálise no Brasil, anterior aos anos 40, em três níveis. O primeiro nível refere-se à difusão que ocorreu entre os intelectuais de vanguarda que formavam o grupo modernista. Essa é a face mais festejada de sua difusão, a de que mais se fala e para a qual se costuma chamar mais atenção – é onde a psicanálise gosta de se reconhecer. Os outros dois níveis não são tão festejados. Representam, ao contrário, a face mais obscura, ou até mesmo rejeitada, da difusão psicanalítica.
O primeiro diz respeito à disseminação da teoria entre a elite médico-psiquiátrica da época. Uma difusão tanto mais impressionante quando se sabe que Juliano Moreira – o maior nome da psiquiatria brasileira do início do século – teve seu nome ligado à divulgação da nova doutrina. Do mesmo modo Franco da Rocha, maior nome da psiquiatria paulista, fundador do Hospício de Juqueri, foi o primeiro brasileiro a escrever um livro sobre o assunto (A doutrina pan-sexualista de Freud, publicado em 1920). Quando em 1927 é fundada a Sociedade Brasileira de Psicanálise, Franco da Rocha será o presidente da seção paulista e Juliano Moreira da seção carioca.6Além deles, outros “luminares” da medicina e da psiquiatria se interessaram pela psicanálise – entre eles Henrique Roxo e Maurício de Medeiros, ocupantes, em momentos diferentes, da cátedra de psiquiatria na Faculdade Nacional de Medicina, e Antônio Austregésilo, o primeiro catedrático de Neurologia da mesma Faculdade Nacional de Medicina. Fora do Rio de Janeiro, também figura na lista dos precursores Ulisses Pernambucano, primo de Gilberto Freyre e o mais renomado psiquiatra pernambucano da época.
Dentre os chamados precursores há dois que de fato adotaram a teoria psicanalítica de forma mais consistente, tanto em seus escritos quanto em sua prática. O primeiro foi Arthur Ramos, baiano, discípulo de Nina Rodrigues radicado no Rio, que utilizou fartamente os ensinamentos da psicanálise em seus trabalhos etnográficos sobre os negros e sua religião. Foi nomeado, nos anos 30, professor de Psicologia Social da Universidade do Distrito Federal. O outro foi Julio Porto-Carrero, de fato o maior entusiasta e o mais renomado divulgador de Freud nos anos 20 e 30 no Rio de Janeiro, que foi professor catedrático de Medicina Legal no curso de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Além de algum tipo de cátedra, todos os precursores citados foram membros da Academia Nacional de Medicina e da Liga Brasileira de Higiene Mental.7
É interessante perguntar porque esses vetustos senhores, tão distantes da vanguarda modernista, vão se interessar por essa estranha teoria que tão incisivamente se contrapunha ao fisicalismo da psiquiatria de então. A saída mais fácil é dizer que eles distorceram a teoria psicanalítica, utilizando a psicanálise para fins não previstos pela teoria. Mas resta a pergunta: porque se deram ao trabalho de prestar atenção psicanálise, de utilizá-la seja lá de que jeito for? Porque não simplesmente descartá-la como bobagem inútil? Acredito que possamos achar uma resposta a tais questões examinando o problema colocado para a elite acadêmica e intelectual de então – o de propor um projeto para a nação brasileira, de pensar a viabilidade da nação, seu desenvolvimento e seu progresso.8
Para resolver este problema era necessário, de algum modo, ultrapassar a pesada herança deixada pelas teorias do determinismo biológico ainda em voga no cenário intelectual europeu. Tais teorias condenavam ao atraso um país como o nosso, em que se misturavam com a raça branca – então considerada superior – raças primitivas e inferiores. Do ponto de vista das teorias deterministas, a miscigenação implicava necessariamente a degeneração do povo. A psicanálise, me parece, fornecia uma saída interessante para essa questão, que passava por uma nova forma de encarar a sexualidade, o primitivismo e, por tabela, a educabilidade (e desenvolvimento) desse povo, viabilizando a possibilidade de um projeto civilizador para a nação.
Em primeiro lugar, a questão da sexualidade. A mistura racial, segundo se acreditava, vinculava-se ao desregramento, ao excesso sexual. A idéia de uma sexualidade excessiva ou desregrada fazia parte da imagem que então se construía acerda da “índole” do povo brasileiro.9 Este excesso, evidentemente, se articulava à noção de primitivismo.
Ora, a psicanálise é uma teoria que vai buscar e apontar a sexualidade onde ela parece não estar, ou seja, que vai falar de um “excesso” sexual que é normal. Representa, neste sentido, uma possibilidade de reinterpretar positivamente o “excesso sexual” que parecia marcar o povo brasieliro. A sexualidade, ou seu excesso, não precisa mais ser percebida como um problema em si já que ela não é nem boa nem ruim em si mesma, sendo responsável tanto pelos piores distúrbios da alma humana, quanto pelas nossas realizações mais sublimes. Inútil negá-la ou reprimi-la. Inicialmente é necessário reconhecer sua real força e sua presença lá onde ela parece estar ausente – nos recônditos da alma, nos comportamentos mais simples e inocentes. Em seguida ela deve ser aproveitada, controlada, canalizada para fins “superiores” através da sublimação. A idéia de sublimação fornece uma teoria da “perfectibilidade” ou “educabilidade” eficientíssima. Tem-se aí uma espécie de saída civilizadora para esse país mestiço: o primitivismo dos instintos, das paixões, o sensualismo excessivo das raças inferiores não são impecilhos insuperáveis para o progresso da nação. A civilização, a educação dos instintos e das paixões é possível. Ao mesmo tempo, é possível fazer uma releitura da questão do primitivismo na medida em que o “primitivo” é deslocado para o interior do sujeito e o evolucionismo deixa de ser pensado de modo unicamente externo, para se acoplar a uma espécie de “evolucionismo” interno. Cada um de nós, independente da raça, tem um “eu primitivo” dentro de si, que deve ser educado, civilizado, transformado.
Neste sentido, acredito que a teoria psicanalítica tenha representado para determinados intelectuais do período uma das formas possíveis de escapar do estrito determinismo biológico, sem abrir mão da idéia de progresso e evolução.9
O compromisso com um ideal civilizador levou vários dos já citados representantes do establishment medico-psiquiátrico identificados como pioneiros da psicanálise a se voltarem para a educação. Ulisses Pernambucano foi Diretor da Escola Normal de Pernambuco em 1923, implementando importante reforma pedagógica. Durval Marcondes dirigiu nos anos 30 a Seção de Higiene Mental Escolar em São Paulo, tendo publicado vários artigos sobre higiene mental e infância. Arthur Ramos, a convite de Anísio Teixeira, chefiou a Seção Técnica de Ortofrenia e Higiene Mental da Secretaria Geral da Educação e Cultura do Distrito Federal. Porto-Carrero, embora não tenha ocupado qualquer cargo semelhante, foi colaborador assíduo da Associação Brasileira de Educação. Além disso, educadores como Deodato Moraes e Lourenço Filho também exploraram a psicanálise pelo viés da pedagogia.
Temos aí uma espécie de psicanálise “chapa branca”, oficial, que busca contribuir para a modernização do país através da boa nova científica.
Psicanálise como “auto-ajuda”
O terceiro modo de difusão da psicanálise no período é, sem dúvida, o menos examinado e falado de todos. Me refiro à divulgação da psicanálise junto ao público leigo.
Em primeiro lugar, é importante assinalar que essa difusão leiga da psicanálise se dá em meio a um interesse generalizado pela chamada “questão sexual”.10 Tratava-se de um fenômeno que extrapolava em muito as fronteiras brasileiras, é claro, mas que teve grande repercussão no Brasil. Os anos 30 assistem a um verdadeiro desabrochar dessa questão em solo brasileiro, com a realização de cursos populares sobre sexologia, comemorações especiais como o “Dia do sexo”, emissões radiofônicas sobre sexo, campanhas de educação sexual. Em 1935 o tema já era tão popular que um clube carnavalesco levou às ruas um carro alegórico chamado “educação sexual”. Em termos de mercado editorial, pode-se falar num boom sexológico. A Questão sexual, do psiquiatra suiço Augusto Forel, publicada em finais dos anos 20, vendeu os 3000 exemplares de sua primeira edição em apenas dois meses. Por isso foi considerada uma “obra de exito editorial sem precedentes”. Em meio a obras de sexólogos de renome, como Havellock-Ellis, e em coleções cujos títulos eram “Estudos de psicologia sexual”, “cultura sexual”, “biblioteca de divulgação sexual”, surgem livros sobre Freud (como na coleção “Freud ao alcance de todos”, da editora Calvino), ou de autoria do próprio Freud e de um dos seus discípulos. O primeiro livro publicado pela Editora José Olympio em 1932 foi Conheça-te pela psicanálise do psicanalista americano J. Ralph. Ao lado dos autores brasileiros de prestígio acadêmico – como Antonio Austregésilo, Arthur Ramos e Julio Porto-Carrero – surge a um autor, extremamente prolífico, cuja carreira merece um exame mais cuidadoso para entendermos em que consistia essa divulgação “popular” da psicanálise e por que meios ela se dava.
Trata-se de Gastão Pereira da Silva, um dos primeiros psicanalistas do Rio de Janeiro, que inicia sua prática nos anos 30, nunca entra em qualquer das sociedades de formação fundadas posteriormente e é geralmente esquecido pelas grandes histórias da psicanálise brasileira Ao contrário de Porto-Carrero, Arthur Ramos e outros “pioneiros”, todos professores catedráticos, membros destacados da Academia Nacional de Medicina, ou ocupantes de cargos públicos, Gastão Pereira da Silva afirma ter praticado “medicina em lombo de burro” no interior antes de interessar-se pela psicanálise no final dos anos 20. Preferindo os meios de comunicação — jornal, rádio e revista — à academia, transformou-se num dos maiores divulgadores da psicanálise. Com o intuito explícito de tornar a doutrina freudiana acessível ao leitor comum publicou em 1931 o livro Para compreender Freud. Esse primeiro livro de Pereira da Silva — que em 1942 estará na sua sexta edição — é publicado às expensas do próprio autor. Os livros seguintes serão publicados por editoras diversas, incluindo a prestigiosa José Olympio, que nos anos 50 inicia a publicação de suas obras completas. Dentre os inúmeros títulos de sua autoria encontramos Lenine e a Psicanálise, Crime e Psicanálise, Neurose do Coração, Educação Sexual da Criança, A Psicanálise em Doze Lições, Conhece-te pelos Sonhos, O Drama Sexual dos Nossos Filhos, Vicios da Imaginação (primeiro publicado pela José Olympio, em 1939, terá seis edições até 1956) e O Tabu da Virgindade.
Para se ter uma idéia da prolixidade de Gastão, basta dizer que em 1933, quando era lançada a terceira edição de Para compreender Freud, ele publicou também Um para 40 milhões, Procópio Ferreira através da Psicanálise e Lenine e a Psicanálise. Em 34 publicou A Psicanálise em 12 lições, Educação Sexual da criança, A Psicanálise e Neurose do Coração, cada um por uma editora diferente (Moderna, Mariza, Andersen e Atlântida). Também é interessante acompanhar suas relações com a José Olympio, a editora de maior prestígio no período, responsável pela publicação dos maiores nomes da literatura brasileira da época. Em 1939 a editora publicouVícios da imaginação, com uma segunda edição em 42, uma terceira em 46 e uma quarta em 48. Enquanto isso lançou Como se interpretam os sonhosem 43 e Como se pratica a Psicanálise em 48. Como se vê, o investimento da editora – que publicava José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado, entre outros11 – em Pereira da Silva não era pequeno, tendo sido, pelo visto, largamente recompensado já que os livros de Gastão não vendiam apenas sua primeira edição, pelo contrário, continuavam vendendo no decorrer do tempo.
Além dos livros, Gastão manteve intensa atividade na imprensa escrita. Em 1934 criou na revista Carioca a coluna “Psicanálise dos sonhos”, ilustrada por uma fotografia de Freud (que dá origem ao livro Conhece-te pelos sonhos). Na revista Vamos Ler manteve uma coluna intitulada “Página das mães” (da qual nasceu o livro Conheça seu filho). Posteriormente colaborou na revista Seleções Sexuais com a seção “Confidências”.
Ainda nos anos 30 manteve durante três anos o programa “No mundo dos sonhos”, na Radio Nacional, no qual, segundo suas palavras, “radiofonizava os sonhos [enviados pelos ouvintes], como se fossem pequeninas histórias, em sketchs, interpretadas pelo cast do rádio-teatro daquela emissora” (Pereira da Silva, 1959, p.188). No mesmo período começou a escrever radio-novelas de cunho psicanalítico, e em sua auto-biografia lista 44 títulos de sua autoria que foram ao ar.12 Criou ainda um “Curso de Psicanálise por correspondência”, sobre o qual escreveu:
xxxxxO poder de penetração desse curso levado, por outro lado, pelo número de uma simples caixa postal, através do rádio, permitiu-me estabelecer contato com muita gente sofredora, esquecida por assim dizer, em certos lugarejos tão distantes, quanto, até mesmo, desconhecidos dos mapas. (Pereira da Silva, 1959. p. 191)
Em seus escritos, além de todo um esforço pedagógico de divulgação dos pontos básicos da teoria freudiana (o inconsciente, a sexualidade infantil, o complexo de édipo, o super-ego) com uma linguagem acessível, Pereira da Silva divulga também autores e teorias sexológicas da época. Seus livros são repletos de relatos de casos que lhe chegaram de leitores de suas colunas ou ouvintes de seus programas – sobretudo sonhos. Todos, obviamente, com conteúdo eminentemente sexual. Essa característica – a abundância de exemplos e relatos de experiências vividas – distingue os livros de divulgação de Gastão daqueles escritos pelos grandes acadêmicos, que também procuravam, em menor escala, se dirigir ao grande público. Trata-se de um recurso que, se por um lado pode ser visto como sensacionalista, por outro, leva o leitor comum seja a se identificar com o que está sendo relatado, seja a examinar sua própria experiência com o intuito de identificar seus próprios sentimentos e vivências – serão eles semelhantes? Será que as coisas se passam da mesma forma comigo?
O objetivo pedagógico básico não é apenas divulgar o teor da doutrina, mas sobretudo divulgar um certo modo de se “auto-problematizar”, que, uma vez realizado, leva à forma “correta” de nomear, circunscrever e interpretar os próprios conflitos. E, claro, à necessidade de falar de si, desvelar seus sentimentos mais íntimos, a um especialista. É este especialista – e não o padre, os pais ou um amigo – a pessoa indicada a ouvir nossas confidências, o que não ousamos confessar para ninguém. Ao mesmo tempo, a problematização realizada através dos relatos de experiências e vivências colocava na berlinda os comportamentos ou normas ditados pela tradição. Da educação dos filhos, passando pela virgindade feminina até a sexualidade no casamento, esses comportamentos mais íntimos, mais privados, migravam da seara da tradição para a visão neutra da ciência. Não se tratava, entretanto, de orientar explicitamente o comportamento. Em seus livros Gastão não necessariamente faz afirmações acerca do que se deve ou não fazer. O caráter pedagógico de seus escritos está muito mais no ensino de um novo modo de encarar a si mesmo e aos outros, que implica a problematização de determinadas questões ou de determinadas áreas da vida.
Pode-se dizer que a extensa produção de Gastão Pereira da Silva indica a existência, na época, de uma espécie de auto-ajuda psicanalítica-sexológica que parecia fazer bastante sucesso e que certamente atingia aqueles setores das camadas médias mais tocados pelo eterno processo de modernização e transformação de valores por que passava e ainda passa a sociedade brasileira. O que nos leva ao fato já observado no que tange à Argentina e à França, de que a vulgarização da psicanálise precedeu (e talvez tenha facilitado) sua institucionalização. Ou seja, quando aqui chegaram os enviados da IPA para formar os primeiros psicanalistas brasileiros, já havia sido produzida, mesmo que de forma incipiente, uma demanda por esse tipo estranho de tratamento. Algumas décadas mais tarde, como se sabe, essa demanda incipiente adquiriu feições de uma epidemia, levando legiões de desorientados filhos das camadas médias urbanas para o divã. O chamado boom psicanalítico dos anos 70 – lentamente preparado, como vimos, pela popularização dos anos 30-40 – reafirma, através de seu inegável vínculo com a modernização autoritária do período, o caráter intrinsicamente modernizante/civlizador assumido pela psicanálise em solo brasileiro.
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Artigo originalmente publicado em Estudos e Pesquisas em Psicologia Ano 2, n.1.
1 Citado por Cocks, 1992, p.16. Em seu artigo Cocks afirma que, após a Primeira Guerra Mundial, “a moda, mas também a controvérsia se apoderaram da psicanálise” a tal ponto que certos analistas temiam que a excessiva popularidade diluísse e desacreditasse a nova ciência (em Cocks, 1992, p. 15-16).
2 No original “De ces réceptions quelque peu cénaculaires, des échos transpiraient naturellement dans la société parisienne. Bientôt il n’y eut plus un salon, plus une réunion de jeunes intellectuels, presque plus un café où il ne fût question de la psychanalyse, c’était devenu le sujet de conversation à la mode, comme l’avait été quelques mois auparavant la theorie de la relativité de M. Einstein.”
3 No original: “Mais d’autre part, il est indéniable que cette diffusion littéraire et mondaine a crée en France un public pour les travaux psychanalytiques: public trop vaste au début, mais dont les éléments frivoles se sont éliminés peu à peu d’eux-mêmes, et que, reduit maintenent à ses éléments les plus cultivés et les plus sérieux, reste très utile au mouvement psychanalytique de notre époque.”
4 Cf. Plotkin, 1997.
5 Sigla que designa a International Psychoanalytic Association.
6 Esta primeira sociedade é fundada graças ao entusiasmo de Durval Marcondes, jovem psiquiatra paulista, que ouve falar de Freud nas aulas de Franco da Rocha e será o único entre os pioneiros que, mais tarde, participará do movimento institucionalizado. Apesar de receber o reconhecimento provisório da IPA em 29, a sociedade não suscitou entre seus membros um real interesse pela formação psicanalítica e já nos anos 30 não existia mais. Sobre o papel de Durval Marcondes na institucionalização da psicanálise paulista ver Valladares, 2000.
7 Em 1926 Porto-Carrero fundou uma Clínica Psicanalítica na Liga.
8 De fato, a resposta que proponho aqui deixa de lado questões relevantes que merecem ser analisadas. Por exemplo, a repercussão entre os psiquiatras brasileiros do modo como a psicanálise teria sido acolhida em outros países.
9 Lembro
aqui os grandes clássicos da historiografia brasileira escritos por
Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Hollanda e Caio Prado
Jr. nos anos 20 e 30 que afirmam a sexualidade como característica
fundamental na explicação da índole do povo brasileiro (cf. Rago,
1998).
10 Na
verdade as possibilidades de compromisso entre a nova teoria e as
teorias hereditaristas eram inúmeras. Porto-Carrero, por exemplo, não
hesitava em se intitular psicanalista sendo ao mesmo tempo adepto
ferrenho da eugenia (ver Porto-Carrero, s/d).
11 As informações contidas neste parágrafo estão em Carrara e Martins, 2000.
12 12 Sobre o papel da Jose´Olympio no cenário editorial brasileiro e o prestígio que o selo transmitia aos seus autores, ver Sorá, 1998.
13 13 Descobrimos títulos de sua autoria até os anos 60 nos arquivos da Rádio Nacional.
Referências
CARRARA, Sérgio e MARTINS, Hildeberto V. A sexologia e o mercado editorial no Rio de Janeiro de entre-guerras. Cadernos IPUB, v. 6, n. 18, 21-36, 2000.
COCKS, Geoffrey Sur un rêve de plats jetés par la fenêtre: de la psychanalyse dans la societé et la vie politique en Europe, 1900-1939.Revue Internationale d’Histoire de la Psychanalyse, v.5, 13-32, 1992.
HESNARD, Angelo Louis Marie e LAFORGUE, René. Aperçu historique du mouvement psychanalytique en France. L’Evolution Psychiatrique, v. 1, 11-26, 1925.
HESNARD, Angelo Louis Marie e PICHON, Édouard. Aperçu historique du mouvement psychanalytique français. Revue de psychologie concrète, n. 1, 105-120, 1929.
PEREIRA DA SILVA, Gastão. 25 Anos de Psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Imperio Editora, 1959.
PLOTKIN, Mariano Ben. Freud, politics and the Porteños: the reception of psychoanalysis in Buenos Aires, 1910-1943. Hispanic American Historical Revew, v. 77, n.1, 45-74, 1997.
PORTO-CARRERO, Julio P. Psicanálise de uma civilização. Rio de Janeiro: Editora Guanabara; Waissman: Koogan, sem data [1933].
RAGO, Margareth. Sexualidade e identidade na historiografia brasileira. In: LOYOLA, Maria Andréa (Org.) A Sexualidade nas Ciências Humanas. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.
ROCHA, Franco da. O Pansexualismo na doutrina de Freud. São Paulo: Tipografia Bernardes Frères, 1920.
SORÁ, Gustavo. Brasilianas: a casa José Olympio e a instituição do livro nacional. Tese de doutorado, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ, 1998.
VALLADARES, Lucia. L’implantation du mouvement psychanalytique à São Paulo (1920-1970). Paris: mimeo, 2000.