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Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira




No Brasil, a preocupação em repertoriar acontecimentos da história da psicanálise é antiga. O primeiro registro data de 1928, quando o freudismo contava com cerca de 15 anos de circulação e experiência clínica no país. De autoria de Julio Pires Porto-Carrero, psiquiatra e um dos primeiros a se nomear psicanalista no país, foi escrito para a aula inaugural do Curso de Psychanalyse applicada à Educação. Estabelecido no estilo positivista próprio da época,1 ele inaugurou uma tradição de trabalhos produzidos pelos próprios agentes e/ou discípulos do movimento. Esses relatos, geralmente reduzidos a uma transmissão oral, inspirados no percurso do mestre e sujeitos aos efeitos da memória, apresentam uma visão legalista do movimento ipeísta, constituindo uma história oficial que, como diz Freud, traduz uma “lembrança de infância” do movimento psicanalítico e ao mesmo tempo “o desejo de influenciar seus contemporâneos, de estimulá-los e inspira-los, ou apresentar-lhes em espelho onde mirar-se” (Freud, 1910/1997, p.92). Testemunhos dos primeiros tempos da psicanálise no país, com suas distorções, mal-entendidos, lacunas e silêncios só serão contestados nos anos 80, no quadro das dissidências no interior do movimento psicanalítico carioca. 

Data também dessa época o primeiro trabalho universitário a romper com essa tradição historiográfica para inaugurar uma abordagem metodológica nos moldes acadêmicos. A primazia coube Gilberto Rocha, em sua dissertação de mestrado defendida no departamento de filosofia da PUC-RJ, em 1983. Inspirado no modelo foucaultiano, que aproxima o nascimento da psicanálise do saber psiquiátrico, nesse trabalho o autor reconstitui, a partir da exploração de fontes primárias e secundárias, confrontados a testemunhos, as condições que permitiram a implantação da psicanálise no país.

Desde então, ainda que a psicanálise não tenha se constituído como objeto de pesquisa dos historiadores de profissão, diversos trabalhos historiográficos foram apresentados nos departamentos de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica ou Psicologia Social, por psicólogos ou psicanalistas. Em geral, são narrativas fragmentadas, com temporalidades distintas e seguindo recortes geográficos precisos, dos quais São Paulo e Rio de Janeiro são os relatos mais conhecidos.

Independentemente das abordagens adotadas, a principal dificuldade nesse tipo de investigação é sem dúvida a ausência de arquivos, de lugares de depósito de documentos e de fontes de pesquisa capazes de restituir as experiências das gerações anteriores. A falta de um lugar de acolhimento não diz respeito apenas às experiências institucionais. O mesmo pode-se dizer dos arquivos pessoais. Sabemos hoje que, durante muito tempo, os herdeiros dos fundadores desse movimento, sem saber o que fazer dessa herança, acabaram por destruí-la, queimá-la. Quanto à documentação que escapou à destruição, e por conseqüência à supressão da história, apresenta lacunas consideráveis, muitas vezes dificultando ou até mesmo impossibilitando sua escrita.

E, no entanto, é surpreendente constatar a força da produção teórico e clínica nos primeiros tempos desse saber, consignando, diria Jacques Derrida (1995/2001), a maneira como a “assinatura freudiana” foi impressa no Brasil.  Nas suas diferentes vias de difusão – psiquiátrica, literária, artística, pedagógica –, mais que um saber sobre a loucura, encontramos as marcas da psicanálise no universo da cultura, como um discurso sobre o social cuja inscrição ficou consagrada na expressão popular “Freud, explica!”. (Oliveira, 2006)

Reunir arquivos que possam contemplar a riqueza e variedade de campos de investigação é, nesse sentido, um grande desafio para todo historiador da psicanálise. Mas como articular uma narrativa, cujas fontes se encontram dispersas, fragmentadas e sem um lugar que possa ser reclamado da psicanálise? Aqui estamos longe da problemática do excesso, como é o caso dos Arquivos de Freud e lidando basicamente com a ausência. Mas também não com a ausência, como a dos arquivos de Lacan. (Roudinesco, 2001)

No Brasil, essa falta talvez possa ser escutada como um sintoma da cultura brasileira. Não seria esse hábito de desprezar o “passado”, sempre procurar o novo, uma forma de negação da inscrição, da filiação, da transmissão? Essa constatação da qual fala Roberto Schwarz, de que “a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar do zero” (1987, p. 30). No que se refere à psicanálise, reconstituir os seus arquivos seria um primeiro movimento no sentido de romper com essa tradição de ausência de interlocutor que de tempos em tempos nos faz retornar ao mito fundante da brasilidade.

Com os arquivos, além da relação autobiográfica à qual todo historiador é remetido – tal como foi assinalada por Elisabeth Roudinesco, como “ato de amor”, “de culto narcísico da coisa arqueológica” –, estabelecemos também uma cumplicidade que passa, como lembra a historiadora Arlette Farge, pelo gesto artesanal, lento e pouco rentável que exige o trato com papéis empoeirados, amarelados, às vezes quase se desfazendo entre os dedos. Infelizmente, visto o estado de conservação de nossa história, em muitos casos é um indicador do seu desaparecimento num futuro recente.

O manejar dos arquivos envolve o movimento do próprio corpo, diz Farge, que reclama as horas, dias e meses passados debruçados sobre documentos, textos e manuscritos que nos permitem fisgar, captar, aqui e ali, traços que virão compor as narrativas sempre em construção. 

Nos arquivos somos também enviados a um outro tempo e a uma outra relação com o produzido. Primeiro, transcrevemos, recopiamos obedecendo a ortografia e a construção gramatical da época e, só mais tarde recortamos, decodificamos os ditos e não-ditos em temas e grades de leitura que tornam possíveis as interpretações, sempre levando em conta o quadro mental da época estudada (Farge, 1989, p,25).

Assim, tomado como uma interpretação, e aqui a psicanálise encontra um ponto de similitude com a história, o trabalho de arquivo é uma tentativa de dar sentido aos acontecimentos e fatos dispersos e disjuntos da história, por meio de um relato que se relaciona com a verdade e ao mesmo tempo com a realidade. 

Não se trata de buscar uma verdade controlável em todos os seus pontos, querer tudo conhecer, tudo explicar, uma verdade total e definitiva, conservada de maneira intacta em contraponto com a história oficial, com lendas e intrigas. Ao contrário, considerando que o sentido do passado não é unívoco, busca-se criar condições de possibilidade para a produção da verdade, o que não deixa de ser uma de interrogação sobre si mesmo. Busca-se, enfim, uma relação entre a verdade e a realidade que nas suas reminiscências está sempre pronta para ser revisitada e reescrita (Farge, 1989, p. 115). Além disso, como assinala Derrida, é preciso levar em conta que o arquivo não é questão de passado; o arquivo não pode ser entendido como um lugar que conserva a memória como passado, mas como possibilidade de um porvir. (Derrida, ibidem, p. 51)

Na aproximação com a memória, as duas disciplinas – psicanálise e história –  encontram um outro ponto de similitude. O trabalho do historiador, como o do psicanalista, se situam entre a rememoração e o esquecimento, portanto colocam em causa a questão da representação mnemônica, ainda que para um a aproximação seja pelo individual enquanto, para o outro, o enraizamento seja no coletivo. Mas, como sugere Paul Ricoeur (2000), no trabalho do historiador, a equação individual/coletivo pode ser resolvida pela convicção da presença permanente no espírito de algo do passado e pela procura de uma inscrição plural da lembrança. 

Já o psicanalista Jacques Hassoun aproxima os dois procedimentos começando por lembrar que o analisando durante a sua análise é levado a narrar sua história não apenas para fornecer ao analista uma amnése racional, mas porque essa história é – no momento da análise – revisitada, recomposta, redefinida (Hassoun, 1997).  Sua hipótese é de que

xxxxxToda narração é composta como um palimpsesto: a verdade subjetiva vindo recobrir constantemente a verdade histórica para nos situar [nós, analistas], em uma posição terceira, quer dizer, em uma posição de interpretar a história do sujeito. (Hassoun, 1997, p.241)

O analisando, continua Hassoun

xxxxxÉ constantemente confrontado ao próprio lugar do seu dito que, revelando-se uma interpretação, inscreve seu discurso em um mal entendido susceptível de se constituir em narrativa. (ibidem) 

Desse modo, a interpretação seria uma construção capaz de dar conta do recalcamento, ou ainda do “segredo”, este muitas vezes se mostrando menos como da ordem do terrível, do indizível, do não confesso, que do “acontecimento”. A interpretação é, nesse sentido, o que permite articular os afetos que estavam separados pela ação do recalcamento. 

Jacques Hassoun assinala também, lembra Monique Novodorsqui, que a história individual não é suficiente para uma subjetivação do sujeito. Apenas a rememoração da própria história não basta ao advento do sujeito. O que lhe dá consistência é a sua inscrição na história coletiva. As duas dimensões são, portanto, necessárias. A história do sujeito se inscrevendo na conjunção da história individual com a história coletiva (Novodorsqui, 1999).

E, no entanto, apesar dessas e outras tantas aproximações possíveis entre a história e a psicanálise, paradoxalmente, constata Roudinesco, mais do que nas outras comunidades, há na psicanalítica uma forte tendência a esconder, censurar e recalcar a sua própria história. Essa resistência dos analistas à sua própria história que para essa autora é exatamente da mesma natureza da que a psicanálise sofreu quando da sua implantação. A resistência à história, diz a autora,é o próprio sintoma da resistência interior da psicanálise a ela mesma, dessa resistência inconsciente dos psicanalistas à verdade que eles transformam em hagiografia, em culto do herói sem medo e sem recriminação, em jargão. Essa resistência tem origem, em parte, no fato de que os psicanalistas têm a impressão de que o único lugar de enunciação possível da história é o tratamento protegido pelo segredo. De onde a idéia de que a história da psicanálise não pode ser contada porque ela revelaria um segredo: um segredo de divã, um segredo médico (Roudinesco, 1997, p. 23). 

No Brasil, encontramos efeitos desse recalcamento desde o início do processo de institucionalização do movimento psicanalítico ipeista carioca, na intervenção do psicanalista alemão Werner Kemper. Formado pela Sociedade Psicanalítica de Berlim, Kemper fez carreira sob o nazismo. Após a capitulação, transformou-se em militante marxista e participou da reconstrução da República Democrática Alemã (RDA), antes de instalar-se no Brasil com sua esposa Anna Kattrin e seus filhos, em dezembro de 1948. Foi enviado por Ernest Jones com a missão de formar a primeira geração de analistas cariocas nos moldes ipeistas. Permaneceu nesse posto até 1967, quando retornou à Alemanha. Seu passado de colaboração nazista silenciado tornou-se público somente na década de 1980.  Em uma disciplina cuja transmissão se faz pelo divã, uma terrível história de filiação nos era então revelada, ilustrando de maneira contundente esse retorno do recalcado: Kemper foi analista de Leão Cabernite, um psicanalista judeu que, na década 1970, no auge da didadura militar presidiu a SBPRJ e era o analista didata do então torturador Amilcar Lobo.2

Além das filiações e genealogias, os arquivos devem conter ainda a história dos seus conceitos e práticas clínicas. Estes, por sua vez, também estão inscritos no coletivo e no social. Nesse sentido, como escrever a história recente da psicanálise no Brasil sem considerar a posição de “neutralidade” exigida dos psicanalistas e a leitura que dela foi feita durante o governo militar ao mesmo tempo em que dominavam nas sociedades psicanalíticas ipeistas o lema “sem memória, sem desejo”. O que não excluiu outras escolas e grupos de adotarem a mesma posição de silêncio sobre pontos obscuros da sua história.

Não por acaso só foi possível romper esse silêncio a partir dos anos 1980. Só nesse momento, como efeito do processo de democratização do país a palavra pôde emergir como possibilidade de neutralizar a repetição, simbolizando o que era inominável e ao mesmo tempo inscrevendo o acontecimento em uma filiação. 

Desde então essa terrível experiência produziu efeito de ruptura nas novas gerações de analistas que ficaram mais atentas à questão da memória institucional. Um exemplo é iniciativa recente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) com a criação da Divisão de Documentação de Pesquisa da História da Psicanálise, em 2002, reunindo a documentação relativa ao movimento ipeista local.

Movimento este que vem se alastrando por outras instituições e, nos últimos anos, produzindo material arquivistico, coletando depoimentos, conservando sua produção. Enfim, pode-se dizer que a partir daí uma memória institucional começou a ser assim preservada, abrindo a possibilidade de um porvir.

Ao mesmo tempo, entre o segredo e a verdade, uma nova dificuldade se coloca para a escrita da história da psicanálise, alias como em toda produção historiográfica sobre o atual, que é a da confrontação da testemunha com o testemunho e sua relação com a realidade. O peso da expressão “eu estava lá, eu participei” – e tudo que isso comporta como efeitos de esquecimento, recalcamento e censura; enfim o peso da “verdade” do depoimento se confrontado ao arquivo documental. 

É o preço a pagar para fazer face a essa “memória impedida” de que fala Paul Ricoeur. A essa memória recalcada deve-se um trabalho de rememoração; um trabalho interpretativo mas cuja essência é fundamentalmente inacabada, posto que mutável. 

Mas, como então resgatar essa memória? Como resgatar a memória de uma prática científica que possui uma emergência histórica, que comporta um tipo de história e um desenvolvimento histórico que, até certo ponto, nos ensina Michel Foucault (1971) é independente de seu conteúdo, e está em parte ligada à constituição da noção de sujeito na história da filosofia ocidental.

Nesse sentido, é preciso ir além do trabalho de celebração promovido pelas instituições. Sob esse aspecto, é necessário que psicanálise também conquiste um lugar na história das ciências, como instancia capaz de integrar as distorções e mal-entendidos que compõe a memória dos pioneiros sustentada em uma produção nos moldes e rigor acadêmico. 

Para concluir, e considerando com Derrida que “não há arquivo sem espaço instituído de um lugar de impressão”, eu diria que os Arquivos da Psicanálise se constituem e se reconstituem levando em conta a forma como o freudismo se relaciona tanto com a história dos conceitos e do fazer a clínica, quanto com os efeitos que esse saber produziu no social. 

Assim, a intenção deste Colóquio Arquivos da Psicanálise foi de aproximar esses pequenos flashes, reunir e refletir sobre traços e marcas constitutivos e produtores da história deste saber, procurando não apenas revelar, mas refletir tanto o que essa memória abriga quanto o que recalca. Mais do que qualquer outro, penso que a Universidade é o lugar propício para sustentar um projeto de reconstituição de Arquivos da Psicanálise no Brasil. Enquanto lugar da diversidade, ela poderá acolher as diferentes maneiras de olhar, catalogar e interpretar a história deste saber e clínica. 




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1 Julio Pires Porto Carrero. Psychanalyse – A sua história e o seu conceito (1928). In Ensaios de psychanalyse. Rio de Janeiro : Flores & Mano, 1929.  Um ano após a apresentação desse texto, Porto Carrero redigiu um outro trabalhao mais detalhado sobre os acontecimentos da psicanalise no país :  « A contribuição brasileira à psychanalyse ». Trata-se do Relatório da Secção de Psicanálise III Congresso Brasileiro de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal e foi publicado nos Anais do Congresso.  Recentemente ele foi publicado na Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, vol V, n.3, p.154-157, set. 2002. 

2 No que se refere ao caso Amilcar Lobo e os seus desdobramentos, além do livro de Cecília Coimbra – Guardiões da Ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995 – remeto à leitura do livro de Helena Besserman Viana. Não Conte a Ninguém… Contribuição à História das Sociedades Psicanalíticas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1994. Um outro documento importante é o livro de Chaim S. Katz. Ética e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1984.



Referências

DERRIDA, Jacques (1995). Mal de arquivo. Uma interpretação freudiana. Rio de Janeiro : Relume Dumará, 2001.

FARGE, Arlette. Le Goût de l’Archive. Paris: Seuil, 1989.

FREUD. Sigmund (1910). Un souvenir d’enfance de Léonard da Vinci. Paris : Gallimard, 1987.

FOUCAULT, Michel. Nietzsche, la généalogie, l’histoire (1970). In Dits et écrits II. 1970-1975. Paris: Gallimard, 1994, p. 137-156.

HASSOUN, Jacques. Narration, fiction, histoire. In Les voies de la psychanalyse. Montreal/Paris: Harmattan, 1997, p. 239-251.

NOVODORSQUI, Monique. La Cassure d’Auschwitz. In Che vuoi ?. Revue de Psychanalyse, n° 12, 1999, p. 73-80.

OLIVEIRA, C. Lucia M. Valladares de. História da psicanálise. São Paulo 1920-1969. São Paulo: Escuta/FAPESP, 2006.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris, Seuil, 2000.

ROCHA, Gilberto. Introdução ao nascimento da psicanálise no Brasil. Rio de Janeiro: Florense universitária, 1989. 

ROUDINESCO. Elisabeth. Psychanalyse et histoire : résistance et mélancolie. In Mona Gauthier. Les voies de la psychanalyse. Paris: Harmattan, 1997, p. 21-34.

_____. L’Analyse, l’archive. Paris : Bibliothèque Nationale de France, 2001.

SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In Que horas são ? Ensaios. São Paulo: Companhia das letras, p. 29-40.